segunda-feira, 4 de maio de 2020

CLANDESTINO AO SOL


Apesar das 11h da manhã, a rua estava deserta. Um sol de inverno forte lavava fachadas e calçadas, mas o fato de todas as lojas, bares e restaurantes estarem fechados, portas cerradas, dava à manhã um ar de noite alta, madrugada até. 

Passei com o carro lentamente, pra não errar a localização do estabelecimento. Não são muitos como ele, mas a confusão entre lojas de tintas, outras de molduras, restaurantes self service, de produtos automotivos e assemelhados confunde quando a gente passa assim, olhando pela janela a 30km por hora. 

Achei. Reduzi a velocidade mais ainda quando vi um faixa de pano amarela, daquelas chamativas, com dois números de telefones - um celular e um fixo. Que bandeiroso, pensei. Precisava tanto? 

Mas também pensei na mesma hora que poderia ser uma tática  para provocar justamente o efeito inverso. Tanta bandeira servia para, pelo excesso, esconder o lugar. Um aviso de papel comum, desses com página de caderno pautado arrancada às pressas e mal colado com durex na parede poderia ser muito mais suspeito. Coisa escrita a caneta bic, como fazem os presidentes que querem posar de gente comum no poder. 

Ok, uma faixa publicitária chamando atenção para o próprio lugar ali à frente. Como já vi aquilo com o carro em movimento, o cérebro, esse ser desconfiado que trazemos trancafiado na quarentena eterna da caveira que um dia seremos, demorou para me mandar parar o carro numa vaga. Nenhum problema, pois que são tantas as vagas nessa temporada de vírus e pestilências políticas. 

Parei o carro, por efeito da minha habitual falta de reflexos mais imediatos, uns cem metros além do estabelecimento. Alguém poderia observar que fiz bem, que foi pra disfarçar um pouco. Não foi, mas acabou sendo, poderia ter sido. O fato é que ninguém me seguiu enquanto eu saía do carro e caminhava lentamente para diante da faixa amarela.

Vejam, não sei quem poderia ser mais bandeiroso naquele momento, se a faixa amarela gigante ou eu mesmo ali diante dela, copiando os números dos telefones num aplicativo do celular. 

Até porque foi uma operação demorada, indigna de qualquer pessoa que precise sobreviver passando despercebido em tempos de ruas desertas e desconfianças de várias naturezas. Ocorre que, vista ruim como sempre fui, o reflexo do sol alto me atrapalhava, criando, se é possível dizer assim, uma sombra de claridade na tela do aparelho onde eu mal conseguia distinguir os números que tentava escrever.

Naquele momento, eu poderia ser facilmente cercado por fiscais, ou policiais ou quem quer que seja. Completamente desarmado como alguém que tenta se concentrar em algo tão absorvente como é um telefone celular. Você se ausenta de tudo, alguém pode apontar uma arma para você que não há, ao menos a princípio, qualquer reação. Nem medo - o telefone como que chupa nossa atenção, como se fôssemos adolescentes vendo pornografia em livros proibidos sob a carteira durante a aula de português. 

Não sei como, escapei de mais essa. Ninguém me deteve, não passou nenhum outro ser vivente pela rua, o sol continuou inclemente sobre a avenida, o meio-fio, a calçada e as fachadas das lojas fechadas. 

Naquele momento, titubeei - admito. Olhei pra fachada com aquelas portas puxadas até o chão, aquelas dobras de metal que pareciam me lançar um afaste-se terminativo e refleti, sempre correndo a cada segundo o risco de ser abordado sabe-se lá por quem. E decidi.

Lutando contra a claridade das sombras que vitrificava mais ainda a tela do celular, puxei o teclado virtual e digitei um dos números que havia anotado - o mesmo da placa amarelona e chamativa à minha frente. 

Enquanto digitava, reparei que uma mulher comum, dessas do povo, mal vestida e feia, certamente funcionária do self service vizinho que provavelmente estava fazendo entregas de casa em casa por um desses coitados que varam a cidade de bicicleta, bateu na porta de metal como quem, com o punho fechado, chama na porta de uma pessoa qualquer. Como estava com atenção voltada para digitar o número do telefone, não consegui distinguir bem, mas notei que houve uma brevíssima conversa entre a mulher e alguém dentro do estabelecimento. Assim me pareceu porque a mulher logo voltou para a loja vizinha, ou restaurante que fosse, como quem está satisfeita com a resposta que teve. 

Isso me encorajou mais ainda a ligar para o número, uma vez que acabara de descobrir que, sim, como eu imaginara, havia gente dentro do estabelecimento. 

De fato, fui atendido ao primeiro toque. Perguntei se de alguma forma estava funcionando, a voz no outro lado - voz masculina, comum, tipo garçom ou vigilante de banco - disse que sim. Perguntou se eu sabia o endereço. "Estou aqui em frente, agora", adiantei, sem saber que tipo de risco estava correndo. Quando vi já havia dito. Veio um "então, pronto", olhei para o céu em busca da proteção que pudesse ter e dei o primeiro passo.

O primeiro passo. Quanta história não já rendeu, desde aquele provérbio chinês que os comunistas adoram. Toda caminhada tem um primeiro passo, precisa de um primeiro passo. E eu que nunca fui comuna por falta de coragem, nunca fui louco de direita por ter decência e juízo, ali estava eu também precisando dar o célebre primeiro passo. A vida não quer saber se você tem vocação para herói ou sina de perdedor - um dia, mais cedo ou mais tarde, aquela convenção que sempre lhe pareceu idiota vai lhe confrontar, exigir que você faça algo de concreto, vá além do sim, pois é, então e use na vida um vocabulário menos dependente de verbos de ligação, meu caro. Aja. Dê o primeiro passo.

Dei-o. E procliticamente me dirigi ao estabelecimento, ainda sob a bênção dada não sei por quem de não ser visto ou notado. Ao me aproximar da porta, esta foi levantada - mas apenas na parte central dele, que era dividida em três blocos metálicos - com aquele rangido que é tudo o que menos se espera em momentos como esse. 

Um rosto comum, de mulato brasileiro cuja vida se dá entre limpar uma mesa de bar e vender pacotes de pipoca nos sinais de trânsito, saiu lá de dentro e vinha me abordar. Na hora, lembrei que deixara a carteira com dinheiro e cartão no carro, assim como a máscara facial de proteção contra o maldito vírus. 

"Um minuto só", pedi, explicando que precisava voltar ao carro. Somente naquele momento percebi o quanto o carro estava longe e o tamanho do risco que voltara a correr num deslocamento simples que em tempos normais seria absolutamente insignificante. Cada passo foi como um bateria de escola de samba marcando o ritmo no coração. Na avenida W3, via que corta o Plano Piloto de Brasília, desfila a GRES Unidos da Cardiologia Temerária. Demorou séculos, mas consegui pegar a carteira e máscara, fechar o carro e me ver, com alívio, na Praça da Apoteose deste anticarnaval que vivemos. 

Entrei no local e a porta foi fechada quase raspando meus calcanhares. Imediatamente. À minha vista surgiram três outros mulatos, magros, legítimos brasileiros. Um sentado atrás de um balcão, outro numa cadeira mais atrás e um terceiro andando em minha direção. Parei e esperei.

Ele me fez um sinal para ir até uma parte na lateral do estabelecimento. Fui, seguindo o mulato. Quando vi estava diante de uma escada. "É lá embaixo?". "Sim". 

Desci rapidamente seguindo o moço, ainda meio perplexo para dar conta de analisar o ambiente. Ao chegar ao subsolo, notei uma mesa de sinuca no fundo, com tacos pendurados nas paredes. E nos balcões, todos aqueles apetrechos cortantes, perfurantes, gumes de vários formatos e dimensões, além daquele cheiro entre hospital e farmácia, reforçado pelo fato de estamos em um subsolo sem janelas. Em algum recanto deveria haver um exaustor. 

Acomodei-me na cadeira e, depois de tanta tensão, cedi à necessidade do momento. Entreguei ao céus o resto das minhas reservas e esperei pra ver qual seria o resultado daquela aventura praticamente clandestina. 

E não é que o barbeiro fez o melhor corte de cabelo que já tive em toda a minha vida? Ah, essa quarentena e suas surpresas. 

P.S.: Ao sair, perguntei sobre dias e horários de "funcionamento" e fiquei sabendo que apenas parte dos barbeiros trabalham para não haver muita proximidade nem entre eles nem entre os clientes. Há uma escala, mas de segunda a sábado corta-se cabelo e faz-barba ali. O mulato que me abriu a porta só fez um último comentário antes de eu sair, dizendo que a qualquer momento poderia vir uma nova determinação para eles não funcionarem. Aquilo me trouxe de volta todas as suspeitas daquele início de manhã de maio e fiquei me perguntando, mas será que eles realmente têm autorização para atender ou eu acabo de cometer uma desobediência civil? 

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