segunda-feira, 18 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 7 - Rota de colisão


Certa vez, numa viagem de carro entre Brasília e Natal, eu e Rejane tomamos um susto daqueles quando estávamos na rodovia pouco antes ou depois da cidade de Serra Negra, já com aquela expectativa de passar logo por Caicó e enfim encerrar o trajeto de milhares de quilômetros chegando a Acari-RN. Tínhamos vindo pelo interior - e não pelo litoral - quando se gasta menos horas mas sempre se está exposto a mais perigos, como o risco de assaltos e fechadas em região do interior de Pernambuco. E sem o bônus que são aquelas estradas agradáveis com cheiro de mar e mato verde de quem vem pelo litoral a viagem se torna, embora mais curta, bem mais cansativa também.

O que acontece neste ponto da estrada? Um outro veículo vindo em sentido contrário, uma camioneta salvo engano da memória falha, repentinamente sai de sua faixa e avança em direção à nossa. Não era uma ultrapassagem ou tentativa de fugir de um buraco no asfalto, algo assim. Não era nada disso. Era absolutamente gratuito. O tal motorista parecia deliberadamente querer se chocar com a nosso carro, ambos em velocidade de não menos de 80 km por hora, talvez uns 100, era uma rodovia normal e com baixa circulação de carros, o que nos animava a rodar ligeiro, sem falar na vontade de chegar que bate no motorista quando ele se aproxima de seu destino.

O carro em direção contrária não desviava - pior, não demonstrava ter consciência do que estava fazendo, do risco em que estava nos colocando e também colocando a si próprio. Parecia que o desejo dele era mesmo avançar, e rápido. O que era aquilo? Um suicídio feito à base de um assassinato automobilístico? Seríamos eu e Rejane, no nosso carro, o instrumento que aquele maluco escolhera para se matar sem se importar se iríamos junto com ele?

Foram segundos de tensão altíssima até que, na última fração de tempo, sorrindo (deu pra ver o rosto dele num instante mínimo), ele desviou aquele carro assassino de cima da gente. Reaprumei o nosso carro - era eu que dirigia, ao menos na minha embaçada lembrança; e digo isso porque nas nossas viagens de carro é comum Rejane guiar mais do que eu, porque gosto de contemplar e ela não gosta de ficar parada - e seguimos adiante, comentando só muito brevemente o caso. Fora algo tão absurdo, que não havia como empacotar aquilo em palavras. Lembro que a partir daí nos tornamos, não por uma questão de cuidado mas de certo tipo muito específico de perplexidade, bem mais atentos ao que o asfalto nos apresentava. Colamos o olhar na rodovia, mal girando a cabeça de um lado a outro das margens. Foi uma experiência fulminante - ainda que breve, sem testemunhas e até hoje praticamente inexplicável.

Se a gente não tivesse, bem antes disso, o costume de fazer essas longas viagens de carro e a naturalidade de deparar com surpresas variadas no caminho - na maioria, ainda bem, boas - e aquilo talvez nos fizesse não querer mais fazer este tipo de viagem. Mas a gente sabia que viajar de carro - a gente, na verdade, até contava com isso - era um jeito interessante e divertido de passar por micro-experiências que de outra maneira não teríamos.

Conto isso aqui para dar conta da minha tarefa diária nesta segunda-feira sonolenta em que ainda não consegui atingir a meta das 46 páginas de um livro de estrada - um que está entre os mais célebres deste gênero. A meta faz parte do projeto Leitura 30, em que tento ler 5 livros ao longo de 30 dias, com o mínimo de 46 páginas diárias. Nesta terça deixei para o fim do dia a leitura e descobri que não é uma boa providência. O sono veio mais cedo, a meta balançou. Como este relato também faz parte dela, resolvi me adiantar e escrever antes as notas do dia.

Fedro, o personagem misterioso que vinha se insinuando desde as primeiras páginas do livro, voltou, estabeleceu-se e revelou-se, enfim. Não vou identificar pra não estragar a fruição de futuros leitores. O livro é um clássico contemporâneo, tem sempre alguém lendo.

E nele, li hoje, há um trecho que narra um episódio idêntico àquele que vivi com Rejane numa rodovia nas proximidade de Serra Negra-RN. Daí ter transcrito a história toda. Igual. Um carro que vem em direção contrária ameaça passar por cima do narrador. Há uma diferença só que faz toda diferença: ele, seu filho e o casal de amigos viajam de motocicleta (O livro, esqueci de dizer, é Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert M. Pirsig). Se a colisão se realizasse, eles seriam esmagados no asfalto preto e virariam aquela placa negra com espessura de papel que os desenhos animados costumam usar em situações assim.

Como nas aventuras do Papa-Léguas, lembram?

Até amanhã.

(e se eu não conseguir atingir as 46 páginas de hoje, não faz tanto mal, pois tenho alguma folga dos dias anteriores, além da chance de acordar amanhã menos indisposto e dobrar a meta).

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