quarta-feira, 13 de maio de 2020

Leitura 30, dia 2 - Família Glass

No segundo dia do desafio Leitura 30, já ganhei um bônus: levantei mais cedo, como há milênios não acontecia.

Enfrentei a bruma matinal do quarto, a névoa densa do banheiro e a friagem levemente ensolada da varanda disposto a cumprir o quanto antes minha meta diária de 46 páginas. Disposto, na verdade, a continuar lendo "Otelo, o Mouro de Veneza" e saber com que artimanhas o ressentido Iago iria conduzir Desdêmona à morte, garantindo ao mesmo tempo para si o posto de tenente de seu senhor, a quem tanto odeia.

Mas como odeia o Iago. Como saboreia esse ódio. Iago iria se sentir muito confortável no mundo de hoje, fosse na Itália, nos zéua ou no Brasil. Iago iria fazer miséria em certo gabinete palaciano da era atual.

Não farei como seu William, não darei spoiler inútil, até porque todos sabem o desfecho. Mas se não ler, linha a linha, palavra a palavra, rubrica a rubrica, não saberá decerto. Antecipações e spoiler não apenas estragam, eles tiram o interesse. Sustam um leitor, suprimem um deleite. E não falo somente do enredo, pois que spoiler de natureza diversa também rumoreja por aí, nas esquinas mal iluminadas. Não vou entregar a encomenda. Não contribuirei para tanto.

Otelo está lido, o livro da primeira meta cumprido. Ah, mas é script breve, roteirinho de peça. É, mas segure aí no colo a densidade, meu caro, minha cara. Aguente o calor da batata literária nas mãos apressadinhas. Não é bem assim, não.

E, pleno de páginas em vantagem - foram 10 a mais novamente até o fim do texto, e desta vez eu contei - lancei-me, já no período da tarde, fim de tarde, na aventura zen de reencontrar, depois de milênios incontáveis, a Família Glass de J. D. Salinger.

O primeiro conto de "Nove Histórias" já é, de cara, "Um dia perfeito para peixes-banana". Um suicídio na décima página (relativize já seu conceito de spoiler, e prometo não mais empregar esta palavra hoje). Um personagem que não se encaixa em nada já na narrativa de abertura. Reencontrei Seymour Glass, o velho e querido Ver-Mais-Vidro que a nova tradução ignorou (preferiu um fonético e estranho "Se mói glé") dentro daquele roupão à beira da praia às voltas com a menina Sybil, cujo nome eu não lembrava. Não lembrava de muitos elementos deste brevíssimo mas intenso conto de, o quê, dez páginas? A (falta de) memória há tempos trabalha a meu favor. Esquecer, em certos casos, é uma bênção.

Não vou sacanear meus parcos leitores: esclareço que "Nove Histórias" é um dos livros que o autor do super best "O apanhador no campo de centeio" escreveu depois do seu fabuloso sucesso, vivendo recluso e evitando fotógrafos (leiam as biografias, vejam os documentários, eles estão por aí), em torno de uma família de crianças-prodígio, superdotados intelectualmente que, adultos, desabam por igual no desajuste. A graça, que eu guardo da época em que li estes livros nos anos 80, é o ponto de vista desse povo à parte sobre a vida consagrada dos americanos totalmente integrados.

Seymour Glass e seus irmãos são como aqueles personagens dos filmes do cineasta Wes Anderson. Não se encaixam em classificações fáceis, desorientam o interlocutor, contrariam expectativas, olham para qualquer bobagem de uma maneira inesperada. Seymour, Franny, Zooey e outros se espalham pelos contos dos livros desta fase, espraiando-se de "Nove Histórias" até "Pra cima com a viga, moçada".

É uma literatura que lhe desloca para outros pontos de observação do mistério da vida. Se é que você, amigão, já não está lá - neste outro ponto. Se estiver, vai nadar de braçada naquele rio raso onde um dia um personagem praticou um suicídio simbólico.

Outro dia tive pena de doer de um jornalista aqui de Brasília. Teve que escrever uma resenha sobre o relançamento de "Nove Histórias". Impossível, ainda mais se dirigindo ao leitor do "Correio Braziliense". Não bate uma coisa com a outra. Coitadinho.

Bem, mas voltando ao projeto: com os dois primeiros contos de "Nove Histórias" dobrei a minha meta diária de 46 páginas que de fato já havia atingido só com a conclusão do "Otelo" (nada menos família Glass do que esta contagem, mas não vou largar meu projeto).



Nestas poucas páginas já deparo com um choque entre inocência e frivolidade, oposição brutal entre o primeiro e o segundo conto (O tio Novelo em Connectcut; e os títulos já lhe dão o figurino pra entrar na festa), numa conta que talvez tenha a busca de sentido e transcendência como ponto de chegada. Mas nem isso se pode garantir.

Nada se pode garantir quando se trata dessa alma à parte que foi J. D. Salinger e seus livros.

Vamos ver o que mais encontraremos amanhã.

Não me deixem alone, please.

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