quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma biografia acidental



Jack London, o escritor, morreu aos 40 anos. A causa nunca esteve totalmente livre da dúvida: decorrência de uma dose excessiva de analgésico para suportar as dores causadas por enfermidade nos rins ou suicídio puro e simples, à base de uma overdose de morfina? Martin Eden, o personagem, morreu jovem - embora não se possa precisar a idade. E não houve dúvidas: matou-se jogando-se ao mar numa viagem ao fundo do que julgava ser uma grande insignificância. Isso depois de escalar um muro social sem apoios e recoberto de cacos de vidro - sair de uma vida mal alfabetizada de marujo miserável para o posto de rico escritor de sucesso na era das revistas de short stories. 

Entre os dois existe algo mais concreto do que trajetórias parecidas, obstáculos similares, desfechos incomodamente semelhantes. Há, entre eles, "Martin Eden", agora sim, o livro propriamente dito, protagonizado por este e escrito por aquele. O romance é bem um retrato da época em que viveu London (1876-1916), os preconceitos vigentes, os estatutos sociais em voga, os gostos aceitos, as preferências elogiáveis, os tipos possíveis de fama e a vasta exposição das misérias possíveis. Mas o lastro social que o painel constrói  não deixa de evidenciar, a cada etapa vencida por Eden, o caminhar difícil do próprio London, que faz com que o livro, segundo os tampas da matéria, possa bem ser considerado uma espécie de autobiografia acidental. London também foi  marujo - mais tarde, já bem sucedido, seguiu viajando com seu veleiro Snark por mares e ilhas nunca dantes navegados, lapidando com seu lado aventureiro a reputação que já vinha aspergindo com seus clássicos "O Lobo do Mar" e "O Chamado Selvagem". 

Ocorre que, como seu pesonagem no "Martin Eden", Jack London também enfrentou os vales da pobreza da transição do século XIX para XX, experimentando, por exemplo - e em um de seus fracassos - a vida difícil da corrida do ouro californiana, que se não lhe rendeu punhados de ouro acabou lhe fornecendo farto material para encher de vida os dois personagens caninos com que furou o rochedo do anonimato literário. London foi tão pobre quanto Eden e tanto como seu personagem bateu em portas e mais portas até que tivesse a qualidade de seus relatos e contos aceitos - mais tarde, celebrados, justamente como ocorreu com o personagem - pelo grand monde das revistas da época. 

O escritor teve, além da enfermidade que levaria à sua morte, outro revés que Eden não enfrentou ao longo da curta vida: certificar-se de quem foi seu pai biológico. O homem a quem procurou, por uma indicação de sua mãe, negou peremptoriamente que fosse seu pai. Jack London ficou órfão mesmo, enquanto até hoje nós aqui embaixo, na planície da literatura que, se não chega aos píncaros, ergue belos castelos populares que conquista massas de leitores, nem nos importamos com isso. 

Jack London, pra mim, era isso: um multi-ativista das letras e do conhecimento como está na moda hoje em dia (embora o prefixo multi acabe servindo para muita picaretagem sem valor), um antropólogo informal, um jovem Câmara Cascudo sem mimos formado no calor das ruas e em cultura diversa mas tão curioso quanto o potiguar da Junqueira Ayres. Um outsider digno do nome. 

É algo triste ler seu "Martin Eden" por constatar a angústia que, por
meio do personagem, pode ter lhe tomado os derradeiros anos - justo o oposto da energia que costumamos associar a ele ao ler seus clássicos mais conhecidos. Ainda assim, como nas provações vividas pelos animais em quem soube como ninguém injetar alma e humanidade emprestada,  há ali até certo ponto as vírgulas da leveza com que ele narra suas histórias. 

Jack London não foi Herman Melville, "O Lobo do Mar" não é "Moby Dick". Mas não se engane, que a singeleza aparente de suas histórias pode conter tantas dores da humanidade quanto o cânone mais abastardo, embora o grau de literatura neste seja naturalmente muito mais superlativo. 

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