segunda-feira, 25 de maio de 2020

LEITURA 30, dias 12, 13 e 14 - Duas rotas paralelas



 A promessa é de uma jornada entre filosófica e espiritual pelas sugestivas estradas que cortam os EUA, numa aventura literária ou ensaística entre pradarias, cidades-fantasmas, ocasos e neons envelhecidos. Não é que não seja isso mesmo, mas há muito mais – o que desvia um pouco a rota que o leitor faz enquanto viaja em duas rodas a bordo de Zen e a arte da manutenção de motocicletas*, o clássico contemporâneo de Robert M. Pirsig. A verdadeira viagem é uma trip bem mais pesada.

Substitua as auto-estradas (que o autor e seus companheiros de viagem evitam) e vias secundárias na vastidão das terras norte-americanas por um planeta sombrio, rarefeito e absolutamente subjetivo. O terreno é vaporoso – aqui e ali você pode afundar com doçura, como se pissasse em grama de algodão –; o horizonte quase sempre é vago, embora haja as estrelas mínimas para garantir que você não vai se perder de tudo; a perspectiva nem sempre lhe oferece aquela sinalização horizontal cujas listras asseguram o que quer que seja de equilíbrio. Nesta outra estrada por onde viajam Robert, um casal de amigos e seu filho de uns 12 anos, além de outra personagem que entrará sorrateiramente no livro e dali por diante só crescerá, a geografia está mais para a paisagem interna do que para o que se vê às margens.  

Quando Fedro, este personagem que chega de mansinho e aos poucos toma conta de quase tudo, entra no relato que encantou jovens dos anos 70 em diante – e que aqui foi publicado em 1984 pela editora Paz e Terra, tornando-se imediatamente um daqueles títulos icônicos que muito dizem sobre quem o tem na prateleira – a jornada ganha outra qualidade. “Qualidade” por sinal é uma palavra-chave no livro, a designar uma tentativa de construção de uma escola filosófica pela qual a humanidade enfim consiga se livrar da dualidade corpo-espírito, mente-coração, racional-emocional, todas essas duplas de palavras que estão sempre a apontar para a mesma divisão e por meio das quais os seres humanos estão constantemente a pendular entre uma situação e outra, um estado de ânimo e outro, um avanço aqui, um recuo acolá e assim por diante.

A viagem que se narra aqui, portanto, é muito menos um trajeto físico entre um ponto A e um ponto B tão comum em livros ou filmes do tipo, e muito mais uma incursão nem sempre tranquila dentro da mente de uma pessoa ocupada em construir, a um preço bastante alto, um novo pensamento ou sensibilidade  - ou algo entre essas duas palavras – que permita ao ser humano possa ler o mundo em sua totalidade.

A aura multicor da era de Aquário, do movimento hippie e de todas as demais manifestações culturais que os anos 60 colocaram na mesa é evocada aqui, da primeira à última linha, mas há um sulco de profundidade inesperada que deixa tudo isso na poeira para penetrar em vias nunca antes transitadas por um cérebro insatisfeito com as ideias até então expostas. Dos riscos, tanto quanto das possibilidades e dos entraves ao desenvolvimento dessa fronteira filosófica é que trata Zen e a arte da  manutenção de motocicletas, começando como o título indica com um exercício de aplicação do que hoje conhecemos como técnica da atenção plena aos consertos dessas máquinas, marca tão iconográfica daqueles tempos, hoje tantas vezes revertida em símbolos do seu oposto, a nefasta supremacia branca que está de volta em nossos dias (repare na pompa dos motociclistas de extrema ignorância à direita que se vê nos atos pró-Bolsonaro nos domingos de Brasília).

Parece um livro sobre a leveza, mas é engano: aqui temos um tratado informal sobre algo bem mais heavy – a vizinhança da insanidade causada pela busca de algo que vá além do racional estabelecido. Sabemos, claro, e só pra voltar a falar do momento atual, que no Brasil e no mundo de 2020 um tanto de reacionalidade respeitada tem se tornado um luxo, mas para fazer essa viagem é preciso inverter a direção e ir além da ciência, tateando metafísicas outras, quase míticas, recuperando formas quase primitivas de codificar a existência, segundo alfabetos há muito abandonados pelas academias.

No Brasil dos fanáticos absolutos que se vem revelando desde 2013, pode parecer que estaremos cedendo a certos retrocessos. É o mal que se abate sobre os clássicos – e aos quais eles, sendo clássicos, sempre sobrevivem –, o desencontro entre a sensibilidade que eles propõem e um mundo em momento de queda, incapaz de entendê-los. Leia Zen e a arte da manutenção de motocicletas como se não existissem terraplanistas na rua em frente – e experimente tirar os pés do chão da razão. O resultado só conte pra quem tem condições de entender.

*Zen e a arte da manutenção de motocicletas foi o terceiro livro lido dentro do projeto Leitura 30, nos quais acertei comigo mesmo ler 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias ao menos. Encerrado este terceiro livro (já foram Otelo, o mouro de Veneza, de W. Shakespeare e Nove Histórias, de J. D. Salinger), iniciei The Last Olympian, 5º e último volume da série Percy Jackson & the Olympians, de Rick Riordan. Sobre este conversamos mais nos próximos dias.

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