Substitua as auto-estradas (que o autor e seus
companheiros de viagem evitam) e vias secundárias na vastidão das terras
norte-americanas por um planeta sombrio, rarefeito e absolutamente subjetivo. O
terreno é vaporoso – aqui e ali você pode afundar com doçura, como se pissasse
em grama de algodão –; o horizonte quase sempre é vago, embora haja as estrelas
mínimas para garantir que você não vai se perder de tudo; a perspectiva nem
sempre lhe oferece aquela sinalização horizontal cujas listras asseguram o que
quer que seja de equilíbrio. Nesta outra estrada por onde viajam Robert, um
casal de amigos e seu filho de uns 12 anos, além de outra personagem que
entrará sorrateiramente no livro e dali por diante só crescerá, a geografia está
mais para a paisagem interna do que para o que se vê às margens.
Quando Fedro, este personagem que chega de mansinho e
aos poucos toma conta de quase tudo, entra no relato que encantou jovens dos
anos 70 em diante – e que aqui foi publicado em 1984 pela editora Paz e Terra,
tornando-se imediatamente um daqueles títulos icônicos que muito dizem sobre
quem o tem na prateleira – a jornada ganha outra qualidade. “Qualidade” por
sinal é uma palavra-chave no livro, a designar uma tentativa de construção de
uma escola filosófica pela qual a humanidade enfim consiga se livrar da
dualidade corpo-espírito, mente-coração, racional-emocional, todas essas duplas
de palavras que estão sempre a apontar para a mesma divisão e por meio das
quais os seres humanos estão constantemente a pendular entre uma situação e
outra, um estado de ânimo e outro, um avanço aqui, um recuo acolá e assim por
diante.
A viagem que se narra aqui, portanto, é muito menos um
trajeto físico entre um ponto A e um ponto B tão comum em livros ou filmes do tipo,
e muito mais uma incursão nem sempre tranquila dentro da mente de uma pessoa ocupada
em construir, a um preço bastante alto, um novo pensamento ou sensibilidade - ou algo entre essas duas palavras – que permita
ao ser humano possa ler o mundo em sua totalidade.
A aura multicor da era de Aquário, do movimento hippie
e de todas as demais manifestações culturais que os anos 60 colocaram na mesa é
evocada aqui, da primeira à última linha, mas há um sulco de profundidade inesperada
que deixa tudo isso na poeira para penetrar em vias nunca antes transitadas por
um cérebro insatisfeito com as ideias até então expostas. Dos riscos, tanto
quanto das possibilidades e dos entraves ao desenvolvimento dessa fronteira
filosófica é que trata Zen e a arte da
manutenção de motocicletas, começando como o título indica com um
exercício de aplicação do que hoje conhecemos como técnica da atenção plena aos
consertos dessas máquinas, marca tão iconográfica daqueles tempos, hoje tantas
vezes revertida em símbolos do seu oposto, a nefasta supremacia branca que está
de volta em nossos dias (repare na pompa dos motociclistas de extrema
ignorância à direita que se vê nos atos pró-Bolsonaro nos domingos de Brasília).
Parece um livro sobre a leveza, mas é engano: aqui
temos um tratado informal sobre algo bem mais heavy – a vizinhança da
insanidade causada pela busca de algo que vá além do racional estabelecido.
Sabemos, claro, e só pra voltar a falar do momento atual, que no Brasil e no
mundo de 2020 um tanto de reacionalidade respeitada tem se tornado um luxo, mas
para fazer essa viagem é preciso inverter a direção e ir além da ciência,
tateando metafísicas outras, quase míticas, recuperando formas quase primitivas
de codificar a existência, segundo alfabetos há muito abandonados pelas academias.
No Brasil dos fanáticos absolutos que se vem revelando
desde 2013, pode parecer que estaremos cedendo a certos retrocessos. É o mal
que se abate sobre os clássicos – e aos quais eles, sendo clássicos, sempre
sobrevivem –, o desencontro entre a sensibilidade que eles propõem e um mundo
em momento de queda, incapaz de entendê-los. Leia Zen e a arte da manutenção
de motocicletas como se não existissem terraplanistas na rua em frente – e experimente
tirar os pés do chão da razão. O resultado só conte pra quem tem condições de
entender.
*Zen e a arte da manutenção de motocicletas foi
o terceiro livro lido dentro do projeto Leitura 30, nos quais acertei
comigo mesmo ler 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias ao menos. Encerrado
este terceiro livro (já foram Otelo, o mouro de Veneza, de W.
Shakespeare e Nove Histórias, de J. D. Salinger), iniciei The Last Olympian,
5º e último volume da série Percy Jackson & the Olympians, de Rick Riordan.
Sobre este conversamos mais nos próximos dias.
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