sábado, 16 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 5 - Os comedores de maçã




Existiram os cronópios e os famas, havia os xarias e canguleiros, e também se tem notícia dos comedores de maçãs. Estes últimos estão no derradeiro conto de "Nove Histórias" de J. D. Salinger, "Teddy".

É em mais um daqueles irônicos mas ao mesmo tempo macios contos que compõem o segundo livro do meu adiantado projeto Leitura 30, em que pretendo ler 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias no mínimo, e o restante quem vem lendo este diário aqui já sabe.

"Nove Histórias" é uma releitura, mas soa como inédito. Faz tanto tempo e guardei apenas vagas impressões, num amálgama que mistura estes contos, amigos queridos no bairro de Neópolis em Natal-RN, os felizes tempos de repórter de um jornal local, o ambiente universitário, a juventude e tudo o que você esteja disposto a colocar dentro dela.

Em "Teddy", estamos de novo às voltas com uma criança prodígio, um espanto de filosofia paralela que desperta a curiosidade das academias harvardianas e similares, numa conversa com um adulto que tenta tirar o máximo desse infante pensador.

"Comedores de maçã" é como Teddy apelida todos nós aqui do outro lado do paredão intransponível da mais pétrea racionalidade. Hum, eu sei que no Brasil atual, no mundo atual mesmo, racionalidade não é pouca coisa e não podemos nos dar ao luxo de desprezá-la. Mas nos idos de 1948, por mais que este mesmíssimo mundo tivesse praticamente acabado de sair dos traumas da II Guerra Mundial - J. D. incluído entre as vítimas emocionais - não havia nascido ainda, renascido ainda, ou se havia tinha consciência da própria estupidez e não ousava se colocar no debate público, essas criaturas que estão por aí agora nos palácios do poder, nas cátedras paralelas da ignorância e nos gabinetes do ódio espalhados pelos vastos continentes. Então, façam um parênteses de suspensão para entender o que a recusa da racionalidade representa na longa conversa que o menino Teddy, 10 anos, tem com um adulto entre autosuficiente e curioso num navio enquanto volta da Europa aos EUA.

Voltando: somos comedores de maçã - e eu não estou gostando nem um pouco de empilhar aqui essas informações básicas, não é bem este o propósito aqui, é bem outro - a partir do momento em que aceitamos, desde criancinhas, e sobretudo desde criancinhas, um punhado de informações sobre tudo, todos, o mundo, os objetos, o que o sistema educacional inteiro e as sagradas instituições nos enfiam goela a dentro. We don't need educacion, dude!

Mas não pense que o conto cabe numa frase escrita em letras berrantes de faixa de protesto. Na última das "Nove Histórias" abre-se um fosso budista entre o leitor e o que está nas páginas. Quem não conseguir levitar de um lado para o outro pode desistir da leitura. É disso que se trata - refundar o ser humano esvaziando nossas mentes de tudo quanto, acumuladores compulsivos, a fizemos transbordar. Sem didatismo, só na base da provocação literária, entendam bem.

Essa pandemia aí fora, com ruas vazias, escolas e comércio fechados, seriam uma boa representação, uma metáfora e tanto do que o menino Teddy quer dizer. O conto tangencia o místico - ou nos faz de bobos. Mas você vai querer ser feito de bobo quando perceber que não há outra maneira de transitar por ele. E é muito bom transitar por ele, caminhar sobre as palavras da conversa que o sustenta.

Com as 46 páginas de hoje - e umas cinco a mais de sobra - a meta foi cumprida. Que vergonha, nada mais contra os doces sermões de Teddy, brilhantemente construídos por Jerome, do que ficar contando páginas. Mas eu comecei o projeto e não sou de desistir.

Até amanhã.

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