quinta-feira, 14 de maio de 2020

Leitura 30, dia 3 - Os Glass estão chegando


Depois de Seymour, o por assim dizer líder da família, reencontrei hoje mais um integrante do clã Glass. Mais de um até. E outra criança com quem eles constroem aqueles diálogos de outra dimensão.

Reencontrei - não lembrava dela, e não consigo, por mais que tente, escrever isso aqui sem intercalar impacientes travessões - Boo Boo, irmã de Seymour. Com ela, encontrei Lionel, um garotinho de 3 ou 4 anos que vem a ser sobrinho de Seymour Glass. A conversa de Boo Boo tentando conseguir de Lionel a permissão para entrar no bote onde o garoto se encontra, em frente à casa de praia onde ela e o marido estão neste momento - Boo Boo é a mãe de Lionel, se eu ainda não expliquei - é uma daquelas cenas soltas, algo non sense, mas que prefiro chamar mesmo de inclassificável, com que J. D. Salinger constrói livros como este "Nove Histórias", que leio no terceiro dia do projeto Leitura 30, que inventei por causa da pandemia e do distanciamento social etc etc e etc e tal. 

Aos pouquinhos, com acontece diante das narrativas de Salinger, a gente vai juntando peças, diálogos, descrições ligeiras de personagens (mais impressões vagas do que físicas) e quando vê está tomado pela literatura do homem. Too late, my dear.

Já disse ontem que isso é uma releitura de algo que muito apreciei milênios atrás. E que tenho memória de formiga, o que me beneficia com um esquecimento reparador e imune a coisas do tipo já-sei-o-final. Não lembrava, por exemplo, que há outras figuras nos contos que não fazem parte da família Glass. Pra mim todo mundo que pingava nas páginas desses contos breves e marcantes embora sempre revestidos por uma camada de imprecisão estava relacionado a Seymour. 

"Logo antes da guerra com os esquimós", o terceiro conto, espiona, tal uma câmera escondida, os desentendimentos entre duas amigas após um jogo de tênis numa área rica de Nova York, aliás, o cenário do livro inteiro e lar dessas figuras quase cubistas por tão diversamente formatadas pelo recluso escritor. São histórias que parecem começar pelo meio e sempre acabar um tantinho antes do que chamamos propriamente de fim.

Interessa a J. D. Salinger e seu leitor cativo o miolo da ação - embora esta também seja quase nadinha. Reinam as impressões, o quadro saturado com camadas de tinta sobrepostas quando visto de perto mas que, a um distanciamento certo, repentinamente revela um painel inesperado. J. D. Salinger é um pintor que usa palavras, frases e muitos, muitos, muitos diálogos. Tão naturais que parecem estranhos. Nossa frágil ou bruta humanidade que teimamos em não admitir ou reconhecer. 

Além disso seus contos sempre guardam espaço, em dado momento, para a entrada, pé ante pé, de personagens que chegam assim, de mansinho. Quase não são notados de início e vão crescendo, ocupando o espaço escrito e de repente percebe-se o quanto são importantes - embora, na maioria das vezes nem precisem falar diretamente ao leitor. Necas: são outros personagens, aqueles que abrem os contos com suas conversas compridas, quem diz tudo sobre eles - e geralmente de maneira equivocada. Mas de uma tal maneira errada que você, leitor aqui do outro lado, acaba sacando de imediato quem é, realmente, aquela pessoa de quem falam. É assim com Seymour, achincalhado pela sogra num papo ao telefone; é assim com um certo Walt que se intromete na conversa das duas amigas em "O tio Novelo em Connecticut". Será assim com Lionel em "Lá no bote", antes que o próprio garoto - que soa como a reencarnação do tio que se suicidara no conto inicial, mas a ordem dos acontecimentos ao longo do livro não se liga em cronologia tradicional - diga ele próprio suas falas. 

Outro fetiche é encaixar uma história dentro da outra, assim como passar de uma situação a outra, vizinha daquela. Dois ambientes, dois diálogos entre duas duplas de personagens e J. D. Salinger expõe seu jeitão esquisito de encarar esse mundão, sem escapar das marcas que a participação na guerra na Europa lhe deixou. Estruturas simples onde ele comprime em gestos, atos e frases cotidianas as imperfeições e possibilidades humanas feridas pelo mau estar de toda uma era. 

Hoje eu fiquei nas 46 páginas de praxe. Meta mínima. Tinha trabalho a mais do que esperava. Não sobrou tempo pra avançar. Mas o projeto era pra isso, pra não falhar, não abrir buraco no desfolhar das páginas, não atrasar o cronograma. 

Tenho alguma frente, se lembrar que no primeiro e segundo dias fui além do estipulado. 

Até amanhã.

* Por que a atriz de "Acossado" serve de ilustração ao post? Porque se fuma muito nos contos de "Nove Histórias". É uma chaminé literária cobrindo tudo com camadas e camadas e camadas de subjetividade. 

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