segunda-feira, 27 de novembro de 2023

A volta do "Vestido"

 


Pingou uma chance de assistir a uma montagem de "Vestido de Noiva", o texto já clássico de Nelson Rodrigues que promoveu uma curva no teatro brasileiro ao propor uma encenação baseada em três planos:

Memória, delírio e realidade. 

Quem leu a já também clássica biografia de Ruy Castro para Nelson, "O Anjo Pornográfico", sabe do impacto da montagem original.

Sabe da dificuldade de montar o texto lá nos idos de 1943. Ziembski fez a montagem inicial. 

Tem a parte do escândalo verdadeiro ou pra consumo externo, num outro Brasil - se bem que, a gente sabe, o Brasil nem sempre evolui o quanto a gente imagina (a propósito, reveja outro clássico, "Cabra Marcado pra Morrer", de Eduardo Coutinho, e note o quanto o bolsoburrismo trouxe de volta coisas que se julgava tão superadas, fim do parênteses).

Pois um grupo de Belo Horizonte está tendo a ousadia de remontar "Vestido de Noiva". Em cartaz no CCBB de Brasília. 

Coragem de mamar em onça, com se diz.

Fomos ver e soou mais corajoso ainda, mesmo que fazendo uma opção cênica meio... conservadora.

Calma que explico: a montagem opta por uma narração em off, apoiada em um subtexto em video (talvez por isso o grupo se chame Oficcina Multimédia, assim mesmo com acento no "mé"), que explica, traduz, facilita o tempo todo o entendimento do texto.

Eu achava, sempre achei (e eu não sou um tampa mas aqui tá implícito que eu li o texto original, li sim), que a graça suprema de "Vestido de Noiva" era o espectador se perder no emaranhado de memória, delírio e realidade. Que explicar isso logo na primeira cena do espetáculo era um supremo sacrilégio, capaz de comprometer a montagem inteira.

Pois eles fizeram justo isso. 

Eu tô em dúvida até agora sobre o efeito, mas a proposta é essa - corajosa ou não? Gosto que haja uma proposta, a gente precisa estar aberto pra ver no que vai dar, abraçar e medir, abalizar. Ruim é ficar parado, só admirando o mito.

Funciona na medida em que aquele telão com a narração, as explicações, os quase comentários, funcionam como uma ilustração a mais da divisão dos planos. Além da memória, realidade e delírio, tem os planos dos vários espaços - reais ou eletrônicos - em que a encenação se dá. Planos formais.

O resultado é uma montagem de extrema agilidade. 

Verdade que também me chateia um pouco um certo cacoete do teatro atual (pelo menos do pouco que eu vejo), essa mania de ficar arrastando objetos de cena como mesas ou cadeiras o tempo inteiro. Há pouco tempo vi também no CCBB-Brasília um ótimo musical sobre Carmem Miranda que tinha essa mesma mania, os atores ficaram o tempo inteiro empurrando letras gigantes no palco. 

Mas, no geral, esse "Vestido" não pára quieto. E isso, claro, deixa menos arrastado o texto original, dá um colorido - um colorido não, um certo tom de sépia pop, digamos assim -  ao mundo sombrio do velho Nelson. Não sei se ele gostaria disso, mas. 

Em momentos mais exagerados, chega a parecer um desenho animado. Alaíde-Papa Léguas, sim, mas é uma proposta - e isso importa, sim.

Também tem uma ótima sacada: a duplicação das intérpretes de Alaíde, a moça que vai casar e é atropelada, dando início à maratona delírio-memória-realidade que serve de eixo ao texto e às suas encenações. 

Duplicada a interpretação (e não só de Alaíde), já se abrem novos planos internos no texto que estimula este tipo de ousadia, se é que ousadia ainda é uma palavra válida hoje em dia. 

Vão ver, se puderem. Nâo se sabe quando haverá outra chance. 

domingo, 14 de março de 2021

DESBAGUNÇANDO A LEITURA



Acabando aqui meu primeiro Philip K. Dick - terceiro livro da editora Aleph desde fevereiro. 2021 começa muito bem. 

 

sábado, 1 de agosto de 2020

Livros do Projeto #1LivroPorDia


Durante 20 dias, de 12 a 31 de julho de 2020, cumpri a meta de ler um livro por dia, selecionando títulos com algo em torno de 150 páginas no máximo. O resumo da experiência está no meu canal no YouTube, o Livros do Sopão. 

Aqui na Hamaca, deixo a lista dos livros que foram lidos e breves informações sobre cada um para quem quiser fazer o mesmo, ou adaptar essa maratona literária às suas condições ou preferências. O importante é abrir o livro do dia, do mês ou da semana e começar a ler. O prazer da fruição pura e simples fará o restante. Boa leitura a todos. 


O Jardim das Cerejeiras  e Tio Vânia – Tchékhov
A Gaivota – Thékov
As Três Irmãs – Tchékhov 

As famílias decadentes de Tchékhov às volta com a falta de dinheiro e perspectiva em peças que observam o dia-a-dia de russos nem um pouco destinados a se tornarem heróis. Realista e desesperançado.

O Profeta – Khalil Gibran
Pequenos sermões em torno de sentimentos e valores como tristeza, amor, razão, paixão, beleza. Contemplativo e sereno.


Globalização, Democracia e Terrorismo – Eric Hobsbawn
O Hobsbawn de mais de uma década para trás esgrimindo sobre temas que a nova era de facismos antidemocráticos parece ter deixado na poeira, como a condenação da imposição da democracia à americana a países do Oriente Médio. Ninguém diria que hoje estaríamos lutando para manter viva essa mesma e frágil democracia. Datado, mas sempre é história. 


Taos – Gustavo de Castro
Gustavo desmonta frases, extrai humor filosófico de palavras gastas e ainda perfila figuras com uma certa Felicidade, além de Tristeza e do Sr. Exatto. Sugestivo até o último verso.

Cercas de Pedras – Jeanne Araújo
A loucura socialmente construída de uma mulher sertaneja em frangalhos sustenta uma novela sobre os limites da moralidade sertaneja. Doloroso mas necessário.

Crônicas de Motel – Sam Sheppard
Fragmentos de beira de estrada, cacos de situações, cenas soltas de um road movie tal como Paris, Texas, que Sheppard roteirizou. Onírico e pungente.


Iracema – José de Alencar
O poema em prosa que Alencar construiu para celebrar nossas origens indígenas usando o verbo que os brasileiros iniciais conjugavam. Com dicionário, vira um google tabajara. Interessante. 

Um Bonde Chamado Desejo – Tennesse Williams
Sexualidade desgovernada, violência doméstica, loucura na decadência em pleno sul dos EUA. Sufocante, mas agora clássico - e teria como ser de outro jeito?


O Santo Inquérito – Dias Gomes
O Berço do Herói – Dias Gomes
Duas alegorias teatrais sobre a identidade política e cultural brasileira sempre à espera de quem a decifre por inteiro. Nunca menos do que exatas. 

Cinema Brasileiro Moderno – Ismail Xavier
Três ensaios sobre cinema de autor, cinema novo e cinema marginal. Por meio do cinema, resulta em um esclarecedor painel sobre o Brasil de 64 para cá. Estimulante. 

Agrestes – João Cabral de Melo Neto
Pernambuco, Sevilha, África e o país da morte na poesia seca e pedregosa do nosso poeta mais ácido. Brasileiro até o último espinho. 

Felicidade Clandestina – Clarisse Lispector
Contos e crônicas que partem da curiosidade infantil para construir aquela que talvez seja a porção mais adulta da literatura brasileira. Difícil, mas fazer o quê?

El Mundo que Respiro – Mario Benedetti
Poemas do uruguaio no original. Seria bobagem comentar. Mas foi lido. 

Arte Poética – Aristóteles
O texto original que vale por uma antiguidade e já foi relido e citado por todos os manuais de dramaturgia. Pra conhecer a fonte. 

Seridó Seridós – Moacy Cirne
Um dos repositórios da lágrimas doces de nostalgia do bardo sertanejo Moacy Cirne. Porque "tudo começou em Caicó". Terno. 

O Senhor Ventura – Miguel Torga
O romance compacto do gênero personagem das façanhas. Um Quixote luso e suas (a)venturas do Alentejo à China. Na fina prosa lusitana que nos lambe os ouvidos. Imperdível. 

Do Existir Façanhoso de Odicélio Gineceu – Augusto Severo Neto
Contraparente do Senhor Ventura, primo distante de João Grilo, Malasarte urbano de uma suposta Natal dos anos 50, Odicélio é uma aprontação depois da outra. Malicioso, desbocado e popularmente lírico. 


terça-feira, 23 de junho de 2020

OS FAMOSOS DESCONHECIDOS




Steve Jobs, todos conhecem. Mark Zuckberg, idem. Mas e o restante dos empreendedores de informática que cresceram, estabeleceram-se e ganharam milhares de verdinhas à sombra dessas celebridades do Vale do Silício? Onde estão, como vivem, de que se alimentam e como se reproduzem? A novela The Unknowns, de Gabriel Roth, não é um Globo Repórter mas responde a essas perguntas a partir do personagem Eric, um típico nerd que virou milionário mas continua meio sem rumo na vida.

Narrado em primeira pessoa pelo tal Eric, que usa e abusa do recurso da auto-ironia, The Unknowns é um livro curto, divertido mas nem por isso pense que se trata de algo não muito denso. Tudo começa numa festa comum de jovens em São Francisco, num tom de coloquialidade que lembra mais um roteiro do seriado Friends, mas aos poucos evolui para um autêntico teste de crescimento de Eric – e, por extensão, o leitor conclui, de todo um segmento de novos riquinhos que a onda da informática de softwares avançados, redes sociais que cobrem tudo e todos e a monetização de tudo isso trouxe para o mundo que tão bem conhecemos hoje.

Eric desenvolveu com um amigo um programa de padrões de consumo que, ao ser vendido a um grande grupo empresarial, fez dele um milionário precoce: praticamente um garoto cheio da nota que não teve tempo de desenvolver a própria personalidade enquanto lidava com logaritmos. A matemática dos sentimentos e relacionamentos não avança na mesma proporção do software que o garoto cria e que vale ouro para quem deseja atingir o consumidor com publicidade direta, por exemplo. Claro que sabemos onde esse tipo de iniciativa acabou dando, a eleição de Trump e quejandos, mas não é disso que trata a novela, claro.

Essa é apenas a janela de contemporaneidade que serve de ponto de partida para o autor jogar com Eric e especular sobre a condição desses novos ricos e seu entorno, explorando um tema que a atualidade deve legar ao futuro. Até porque mal você se situou nesta condição do personagem, entra em cena outra questão igualmente atual, a das denúncias de abuso sexual de crianças dentro de suas próprias casas – e sua contestação, igualmente polêmica. O livro se adensa, o protagonista se perde – logicamente é mais simples lidar com equações do que com sentimentos, ainda mais do tipo que mal se consegue expressar, quando mais resolver – e The Unknows sobe vários degraus.

Aqui o livro deixa de ser uma superficial versão escrita de coisas como o seriado Friends e procura deixar sua marca no mundo da literatura propriamente dita. The Unknowns não tem uma versão em português, mas neste mesmo mundo de que trata o livro do novo comércio que desconhece fronteiras, pode ser facilmente encontrado nos Amazon da vida.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Leitura 30, a conclusão.


Considerações gerais do projeto Leitura 30, 5 livros em 30 dias. Em video; aqui o primeiro de uma série de três pra dar conta de como foi a experiência. Um exercício de quarentena interessante pra quem quer preencher melhor o tempo neste período de distanciamento social.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

LEITURA 30, dias 15 a 28 - Monstros na reta final





 O período deste post cobre 13 dias sem o amigo ter notícias do Projeto Leitura, 5 livros a serem lidos em 30 dias, 46 páginas mínimas por dia, conforme anunciado aqui à exaustão. Ocorre que um dos itens do desafio ficou pelo caminho - a ideia de deixar aqui uma impressão, uma nota, uma observação por dia ao longo do processo de leitura que, para quem não vinha acompanhando, adaptei como experiência de quarentena a partir da dica que encontrei nos videos de um professor de literatura que é também booktuber (Literamaro é o nome do canal pra quem quiser checar). 

Ler o número mínimo de páginas - que resulta da divisão do total de páginas de todos os 5 livros escolhidos previamente por 30 - é moleza, embora um dia ou outro eu tenha falhado em função de ocupações de trabalho e outros afazeres, sempre compensando no dia seguinte com a leitura do dobro deste mínimo; o difícil é escrever algo todos os dias. Exaure, dissipa, desestimula e acaba virando só uma obrigação pouco produtiva.  Se a leitura pede tempo, a elaboração que ela exige pra ser transformada em novos textos cobra maturação, espera, um certo ócio até - enfim, tempo também, mas de outra natureza. Contra isso eu desisti de brigar.

Mas não desisti do projeto e as leituras seguiram. Nestes 13 dias, comecei e terminei The Last Olympian, o quinto e último volume da série Percy Jackson & The Olympians que faz a festa dos leitores infanto-juvenis, como meu filho Bernardo, que hoje tem 13 anos mas leu todos os livros quanto estava lá pelos 11. Leu antes de mim, o que foi um estímulo a mais para que eu iniciasse a imersão nestes livros há coisa de mais de um ano atrás. Eu ainda estava cursando o Brasas - aqui tudo é feito com atraso, embora com amor - e pensei em atingir dois alvos lendo a série: compartilhar algo com meu filho, com a vantagem de estar atrás dele na apreciação dos livros, como se tivesse me tornado atrasado em relação ao garoto; e praticar a leitura de originais em inglês pra continuar testando os efeitos da aulinhas do Brasas, o que eu já havia feito com outros livros. 

Percy Jackson vem a ser um novo Perseu, renascido em Nova York, um adolescente meio humano meio deus grego, porque filho de um deles - Posseidon, o cara que manda nos mares e outros aquíferos - e de uma mortal moradora de Manhatan. Ao descobrir sua condição - que, como humano lhe causa uma série de problemas, como a dislexia - ele é alçado ao acampamento dos semideuses onde se encontra com outros adolescentes americanos que têm a mesma condição. Este acampamento fica meio que suspenso sobre a metrópole norte-americana, com vários portais que levam a ele situados em pontos cruciais da cidade, como o Empire State Building*.

Nisso se mistura mitologia com a contemporaneidade num pacote amarrado por aventuras que mal lhe dão tempo de respirar entre um capítulo e outro. A diversão do livro, para um adulto que como eu resolva se arriscar, é ver como Rick Riordan, o autor (é ele na foto que ilustra o post), tão bem sucedido quanto J. K. Rowling e seu Harry Potter, diverte-se e nos faz rir ao distribuir pelos livros da série uma variedade de figuras mitológicas - desde oráculos e sátiros até um deus enfadonho como Morfeu, que faz todo mundo cair no sono por onde passa. Jogados na contemporaneidade que a série usa como anabolizante para o choque entre mortais, deuses, semideuses, monstros e titãs, ganham atualidade de uma maneira inesperada e geram mais e mais aventuras. 

Terminado o último livro da série, o volume seguinte do Leitura 30, em que imediatamente ingressei, é A Arte da Ficção, uma coletânea de ensaios curtos sobre os instrumentos que a literatura usa para capturar o leitor. Foram textos publicados em jornais e reunidos num desses livrinhos de bolso da L&PM, escritos pelo britânico David Lodge, ele próprio um escritor. De Jane Austen a James Joyce, passando por J. D. Salinger, ele vai alinhavando um elemento desses por capítulo - Clima, Ambientação, Estranhamento são três exemplos - e aplicando os conceitos a livros célebres, logo em seguida a um trecho de cada um. 

Talvez esteja sendo o livro mais difícil dos cinco que escolhi. O motivo é que se trata não de um texto de teatro, como era Otelo, ou de uma narrativa meio ensaística mas presa a um tema, como foi Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, tampouco contos como os de Nove Histórias. Não, aqui é um livro sobre livros. E o que acontece quando alguém que gosta de ler histórias se vê no meio de um livro que trata justamente disso, citando vários deles, muitos dos quais o leitor não apreciou ainda? Você quer largar o livrinho de ensaios e ir atrás do livro citado, é ou não é? Não temam, tenho um projeto, e não posso, não devo e não fiz isso. Fui apenas anotando mentalmente os livros lá discutidos para procurar e ler depois. Com 5 livros ao mês, média de 50 páginas ao dia, posso ambicionar um bocado, concordam?

O projeto segue - e não apenas segue, mas termina dentro de dois dias apenas. 

Estaremos em 12 de junho, estupefatos diante da rapidez da passagem desse curto mas ao mesmo tempo rico intervalo de tempo.  Começamos este projeto no dia 12 de maio, ainda meio na base de certa incredulidade se iríamos cumprir.

Não pelo volume de páginas e livros - continuo desconfiado que faria mais ou menos o mesmo processo caso não estivesse "medindo" as páginas dia a dia - mas pela regularidade nos marcos de leitura, algo que não combina muito comigo, o Leitor Bagunçado se estão bem lembrados. Se o objetivo era manter a frequência, esta tem sido alcançada. 

Não é possível que venhamos a estragar tudo em meros dois dias.

*Perdão, o Empire State não é um portal para o acampamento. É na verdade o próprio lugar onde fica o Monte Olimpo, onde os deuses têm seus tronos. Depois de 5 livros com tantas aventuras, fica fácil se confundir.

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