terça-feira, 12 de maio de 2020

LEITURA 30, um desafio - Dia 1



Isolamento chegou, todo mundo inventou algo, desengavetou coisas que não fazia há tempos, botou em prática projetos pra amenizar os efeitos dos dias e dias tentando sair de casa o mínimo possível.

Pois eu também acabei arranjando aqui um "projeto" pra esse tempo, embora ao longo dos dias úteis não me sobre tanto tempo assim, já que no meu caso o tal do teletrabalho funciona e muito bem - às vezes tem mais trabalho do que quando eu ia fisicamente pra meu postinho de atuação, meu terminal que me dá saudade, meu cantinho na TV Câmara. Vamos ao tal projeto.

Tenho o mau costume de assistir aos videos dos booktubers e me divertir com a maneira como eles fazem quase um exibicionismo cultural enquanto falar mesmo da essência dos livros, do que eles trazem, representam, incentivam, expõem ou destacam oferecem de fato muito pouco. Mas é sempre bom esse povo todo falando de livro, ainda que se você fizer uma estatística vai notar que a maioria fala dos mesmos livros, os mesmos lançamentos, comentam e recomentam os mesmos clássicos numa verborraria tantas vezes vazia e que poucas vezes joga uma luzinha que seja em algo novo, um aspecto não notado, uma característica que o próprio passar do tempo acaba dando a livros tantas vezes lidos. É fácil falar de clássicos - não se corre riscos.

Gosto dos booktubers, não desejo o mal deles, acho que mesmo mascando clichês já sem gosto pelo tempo decorrido eles ainda dão alguma contribuição num país de tamanha indigência literária (não por parte dos autores, mas dos leitores, ou da falta deles), mas dos que vi até agora dificilmente tem um que se arrisca e chega aos escritores não tão conhecidos, pouco badalados e que merecem pelo menos um pouco de curiosidade por parte dos leitores. Sinto muita falta da nossa Clotilde Tavares, que injetava um pouco de inteligência - e rock and roll, se me entendem - neste panorama das moças e rapazes que querem se tornar referência para a indicação de livros ao público em geral. Numa palavra, falta personalidade aos booktubers.

E chega de preâmbulo: o fato é que, navegando entre booktubers, encontrei um que anuncia um plano mágico sobre como ler 5 livros por mês. Eu fiquei atraído na hora. Mesmo levando em conta que talvez, quem sabe, quando o trabalho não puxa tanto, eu consigo ler 5 livros por mês - 5 não, mas 3, ou melhor, 2 - sem planejamento. O fato é que, na falta de "projeto" melhor para, no futuro, contar aos netos e bisnetos como foi que eu enfrentei bravamente aquele período da quarentena contra o coronavírus, resolvi aderir ao desafio.

Não é complicado, não é milagre e pode servir pra muita gente. Não tô falando de gente que não lê, que desiste depois da página 20, público iniciante. Não, pode servir pra mim também, leitores bagunçados como eu, pra otimizar, pra disciplinar melhor o tempo, pra solidificar um hábito que já tenho mas nem sempre se rende à distribuição das horas e tarefas do dia.

O cara faz uma matemática que torna menos difícil, digamos assim, alguém ler 5 bons livros por mês (entre pequenos, médios e pelo menos um "grande", tipo 400 páginas em média). Pegue os livros e some o número de paginas de todos eles, depois divida por 30. Vocês me perdoem as considerações numéricas meio acacianas mas desde tenra idade eu tenho um respeito pela matemática que me obriga a ser de um didatismo quase pedestre quando trato com essa matéria. Se não for assim, eu erro. E erros de matemática já me deram grandes prejuízos pessoais, acreditem (tipo transpirar de nervoso por necessidade de tirar aquela nota alta, quase máxima, para passar de ano na 7a serie ou no 2o ano do ensino médio, e chega de confissões).


O segredo aqui é que, feita a divisão, em média o resultado vai dar entre 40 e 50 páginas - que é o que você precisa ler por dia (o mínimo, bem entendido) para que, completados os tais 30 dias, tenha afinal lido aqueles 5 livros que lhe pareciam tão difíceis de atravessar.

Peguei minha caderneta e a calculadora do celular e joguei-me ao mar das letras e dos números.

Empilhei os livros que desejo submeter a essa exótica experiência:

-Otelo, a peça de Shakespeare (148 páginas)
-Nove Histórias, J. D. Salinger (que quero muito reler, 206 páginas)
-The Last Olympian, Rick Riordan (o último da série de 5 livros que ainda falta ler, 381 páginas na edição em inglês)
-Zen e  arte da manutenção de motocicletas, Robert M. Pirsig (um livro que sempre quis ler e só agora consegui um exemplar via Estante Virtual, 388 páginas)
-A Arte da Ficção, David Lodge (um ensaio que despertou minha curiosidade publicado na série de bolso da L&PM, 236 páginas naquela letrinha miudinha lá deles).

Somando tudo e dividindo o número de páginas que tenho pela frente por 30 dias, deu 46 páginas (arredondei, na verdade deu um decimal insignificante) por dia. Moleza.

É ou não é? Rapaz, em livro bom, da metade pra frente, a gente tendo tempo passa das 100 páginas facim, facim. O problema, desconfio, são os dias em que a gente, assoberbado pelas tarefas do cotidiano, esquece ou não consegue ler aquele livro que está bem interessante até.

Como sou avesso à rotina, esses buracos de dias sem ler são muito comuns pra mim. Quem sabe com o "projeto" eu resolvo isso?

Esta terça-feira, 12 de maio de 2020, foi o primeiro dia. A reta de chegada fica no dia 12 de junho. Será que vamos conseguir? Ou conseguiremos até antes, como diz o booktuber lá nos videos que é muito comum acontecer. Primeiro dia. Fui bem? Sim, senhor, li bem mais do que as 46 páginas iniciais de "Otelo", porque o danado do Shakespeare, com um bom roteirista objetivo e ligeiro, não perde tempo e vai direto ao ponto. Duas páginas e a traição armada por Iago já iça velas e ganha o mar da superfície das páginas. E então você vai junto e até esquece da meta mínima e quando vê já está quase a desconfiar da terra à vista ali adiante.

Descobri que em Otelo, Shakespeare...

1) dá spoiler, na boa. Mais que isso, usa o spoiler abertamente pra prender o leitor (no caso o público do teatro, vocês me entendem). Iago, em conversa direto com quem o lê ou assiste, faz igual a Ricardo III e adianta o que pretende fazer. Dizem que o público típico de novelas adora spoiler, ao contrário do público típico de séries tipo Netfix e similares. Pois o público típico de novela ia adorar Shakespeare Clair na sua técnica de dizer antes, na verdade um falso spoiler, porque o personagem diz o que pretende, adianta alguns métodos, mas a realidade de como isso vai se dar na prática só vamos saber lendo. Funciona que é uma beleza.

2) O cara é muito bom de falas. Tem umas que você pode usar na vida pessoal. Exemplo: "Jogue suas conjecturas na goela de Satanás, que é de onde você as tirou".  Nas 24 horas dos turbulentos dias atuais, não faltará oportunidade pra você surpreender os idiotas que lhe cruzam o caminho com arremedos de ideias, tipo terraplanistas de várias colorações, saindo-se com um frasão deste. E nem precisa dar o crédito. O ignorante vai achar que você é um gênio.

3) Shakespeare é autoajuda, e das melhores. Ilumine-se com este trecho: "Lamentar um infortúnio que está morto e enterrado é dar o passo certo na direção de atrair para si novo infortúnio". Palavras do Doge de Veneza na Cena III do I Ato.




4) Como Shakespeare faz para que Desdemôna, tão doce, tão bela, tão branca e tão rica seja seduzida pelo negro e guerreiro Otelo, pintado pelos outros personagens como pouco mais do que um valente homem de batalha despossuído de outros dons ou talentos? Ora, usando a mesma tática daquele célebre mito literário das mil e uma noites - contar histórias. Narrar é seduzir, é o que o bardo acaba dizendo na cena em que Otelo explica aos demais homens como "pegou" a donzela filha do senador Brabâncio. "Agradeceu-me e pediu que, no  caso de ter eu um amigo que a amasse, ensinasse a ele como contar minha história, e isso bastaria para enamorá-la", diz o negão na lata diante dos branquelos incrédulos. Foi contando as aventuras que viveu que Otelo se aproximou da futura esposa.

5) e tem mais um  pouco de autoajuda, que eu não resisto porque é bom demais: "Como são pobres os que carecem de paciência! Que ferida alguma vez cicatrizou que não fosse por etapas?" Palavras do canalha Iago, que pode ser uma peste em matéria de má influência, mas não é burro nem um pouco.

E assim foi, entre sentenças tão instigantes, o meu primeiro dia do projeto Leitura 30, vamos botar um nome pra coisa pegar e impor respeito. Já disse que não sou afeito à rotina, mas farei um esforço sobreliterário pra todo dia vir aqui e contar como foi cada dia desse desafio.

Para o primeiro dia, um saldo adiante de umas 10 páginas (não calculei, porque as obrigações normais do dia chegaram e não permitiram essa exatidão), já me dou por animado.

Torçam por mim e até amanhã.

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