segunda-feira, 25 de maio de 2020

LEITURA 30, dias 12, 13 e 14 - Duas rotas paralelas



 A promessa é de uma jornada entre filosófica e espiritual pelas sugestivas estradas que cortam os EUA, numa aventura literária ou ensaística entre pradarias, cidades-fantasmas, ocasos e neons envelhecidos. Não é que não seja isso mesmo, mas há muito mais – o que desvia um pouco a rota que o leitor faz enquanto viaja em duas rodas a bordo de Zen e a arte da manutenção de motocicletas*, o clássico contemporâneo de Robert M. Pirsig. A verdadeira viagem é uma trip bem mais pesada.

Substitua as auto-estradas (que o autor e seus companheiros de viagem evitam) e vias secundárias na vastidão das terras norte-americanas por um planeta sombrio, rarefeito e absolutamente subjetivo. O terreno é vaporoso – aqui e ali você pode afundar com doçura, como se pissasse em grama de algodão –; o horizonte quase sempre é vago, embora haja as estrelas mínimas para garantir que você não vai se perder de tudo; a perspectiva nem sempre lhe oferece aquela sinalização horizontal cujas listras asseguram o que quer que seja de equilíbrio. Nesta outra estrada por onde viajam Robert, um casal de amigos e seu filho de uns 12 anos, além de outra personagem que entrará sorrateiramente no livro e dali por diante só crescerá, a geografia está mais para a paisagem interna do que para o que se vê às margens.  

Quando Fedro, este personagem que chega de mansinho e aos poucos toma conta de quase tudo, entra no relato que encantou jovens dos anos 70 em diante – e que aqui foi publicado em 1984 pela editora Paz e Terra, tornando-se imediatamente um daqueles títulos icônicos que muito dizem sobre quem o tem na prateleira – a jornada ganha outra qualidade. “Qualidade” por sinal é uma palavra-chave no livro, a designar uma tentativa de construção de uma escola filosófica pela qual a humanidade enfim consiga se livrar da dualidade corpo-espírito, mente-coração, racional-emocional, todas essas duplas de palavras que estão sempre a apontar para a mesma divisão e por meio das quais os seres humanos estão constantemente a pendular entre uma situação e outra, um estado de ânimo e outro, um avanço aqui, um recuo acolá e assim por diante.

A viagem que se narra aqui, portanto, é muito menos um trajeto físico entre um ponto A e um ponto B tão comum em livros ou filmes do tipo, e muito mais uma incursão nem sempre tranquila dentro da mente de uma pessoa ocupada em construir, a um preço bastante alto, um novo pensamento ou sensibilidade  - ou algo entre essas duas palavras – que permita ao ser humano possa ler o mundo em sua totalidade.

A aura multicor da era de Aquário, do movimento hippie e de todas as demais manifestações culturais que os anos 60 colocaram na mesa é evocada aqui, da primeira à última linha, mas há um sulco de profundidade inesperada que deixa tudo isso na poeira para penetrar em vias nunca antes transitadas por um cérebro insatisfeito com as ideias até então expostas. Dos riscos, tanto quanto das possibilidades e dos entraves ao desenvolvimento dessa fronteira filosófica é que trata Zen e a arte da  manutenção de motocicletas, começando como o título indica com um exercício de aplicação do que hoje conhecemos como técnica da atenção plena aos consertos dessas máquinas, marca tão iconográfica daqueles tempos, hoje tantas vezes revertida em símbolos do seu oposto, a nefasta supremacia branca que está de volta em nossos dias (repare na pompa dos motociclistas de extrema ignorância à direita que se vê nos atos pró-Bolsonaro nos domingos de Brasília).

Parece um livro sobre a leveza, mas é engano: aqui temos um tratado informal sobre algo bem mais heavy – a vizinhança da insanidade causada pela busca de algo que vá além do racional estabelecido. Sabemos, claro, e só pra voltar a falar do momento atual, que no Brasil e no mundo de 2020 um tanto de reacionalidade respeitada tem se tornado um luxo, mas para fazer essa viagem é preciso inverter a direção e ir além da ciência, tateando metafísicas outras, quase míticas, recuperando formas quase primitivas de codificar a existência, segundo alfabetos há muito abandonados pelas academias.

No Brasil dos fanáticos absolutos que se vem revelando desde 2013, pode parecer que estaremos cedendo a certos retrocessos. É o mal que se abate sobre os clássicos – e aos quais eles, sendo clássicos, sempre sobrevivem –, o desencontro entre a sensibilidade que eles propõem e um mundo em momento de queda, incapaz de entendê-los. Leia Zen e a arte da manutenção de motocicletas como se não existissem terraplanistas na rua em frente – e experimente tirar os pés do chão da razão. O resultado só conte pra quem tem condições de entender.

*Zen e a arte da manutenção de motocicletas foi o terceiro livro lido dentro do projeto Leitura 30, nos quais acertei comigo mesmo ler 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias ao menos. Encerrado este terceiro livro (já foram Otelo, o mouro de Veneza, de W. Shakespeare e Nove Histórias, de J. D. Salinger), iniciei The Last Olympian, 5º e último volume da série Percy Jackson & the Olympians, de Rick Riordan. Sobre este conversamos mais nos próximos dias.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 11 - O autor



Eis o autor.

E hoje eu só posso ir até aqui.

Mas o projeto segue (Leitura 30, 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias no mínimo).

Com 46 páginas de frente, posso estar "atrasado".

Até o fim da noite isso se resolve.

Até amanhã.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 10 - Baratos afins


Hoje vamos de lista. Coisas para ver, ouvir, sondar enquanto você lê Zen e a arte da manutenção de motocicletas, o clássico contemporâneo de Robert M. Pirsig que estou lendo dentro do projeto Leitura 30, em que leio 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias ao menos. (ontem dobrei a meta, de maneira que estou até com folga para hoje).

FILME
-Easy Rider, Sem Destino, o filme de Dennis Hopper é até obvio na conexão com o livro.


LIVRO
-O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, a epopeia hippie de Tom Wolfe que comprei esses dias na Estante Virtual para reler.
-Verdes vales do fim do mundo e Longe daqui, aqui mesmo - Antonio Bivar
-Nove Histórias, J. D. Salinger
-O ponto de mutação, Fritjof Capra
-O poder do agora, Ekhart Tolle


MÚSICA
-James Taylor, qualquer disco
-Janis Joplin, idem
-Trilha sonora do filme A força do destino
-Eric Clapton, qualquer disco
-Sérgio Sampaio, idem
-Tom Zé, idem

quarta-feira, 20 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 9 - Uma montanha por dia


O amigo(a) já subiu uma montanha? Não? Então quando surgir a oportunidade, siga a receita a seguir:

"A montanha deve ser escalada num equilíbrio entre a disposição e o cansaço. Aí, quando a gente não estiver mais pensando no que vai encontrar, cada passo será não um meio para alcançar um fim, mas um acontecimento em si mesmo. Esta folha tem bordas recortadas. Esta pedra parece que está solta. Deste lugar não se pode ver a neve, embora estejamos mais próximos dela. São coisas que vamos percebendo, de um modo ou  de outro. Viver somente para alcançar um objetivo é mesquinho. A vida floresce nas encostas das montanhas, não nos cumes. Aqui é que nascem os seres vivos."

No Monte do Galo, situado em Carnaúba dos Dantas-RN, pleno Seridó, você não poderá estar próximo de ver a neve. Mas terá um horizonte que subscreve cada palavra do parágrafo acima, extraído de Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert M. Pirsig, que leio como parte do projeto Leitura 30. Pelo projeto, leio 5 livros ao longo de 30 dias, com um mínimo de 46 páginas diárias.

Mesmo com muito trabalho e outras obrigações do dia-a-dia em casa, hoje a meta foi atingida com folga.

Amanhã veremos.

Veremos se eu consigo subir este pedacinho da montanha que arrumei pra mim mesmo um pouco a cada dia.

terça-feira, 19 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 8 - O Brasil acabou



Os assuntos dialogam, as informações se cruzam, interseções se fazem. Independente de qualquer planejamento. Eu havia lido um dia antes no exemplar da Folha de S. Paulo de sábado passado uma matéria sobre o livro secreto - agora nem tanto - que militares escreveram e produziram para se contrabalançar ao histórico Brasil, nunca mais, que em forma de um pungente relatório levantou vítimas, métodos e circunstâncias da tortura praticada nos centro de política política durante a ditadura mais recente que o Brasil viveu.

A reportagem vai além e mostra como este livro - que de apostilha com uns dez exemplares circulando em mãos restritas acabou sendo publicado de fato por uma editora de livros - é parte da transferência para o Brasil das práticas da extrema direita radical norte-americana estabelecida naquele país desde os anos de torpeza e paranoia anticomunista da guerra fria. Pois hoje, ao continuar a leitura de Zen e arte da manutenção de motocicletas, o clássico filosófico contracultural e contemporâneo de Robert M. Pirsig, encontrei um trecho que dialoga, conversa, produz uma baita interseção com a matéria da Folha e, enfim, com tudo o que temos vivido neste Brasil convulsionado e cruel dos dias atuais.

"O estado de Montana nessa época fora assaltado por uma praga de políticos direitistas radicais como aquela que atingiu Dallas, Texas, imediatamente antes do assassinato do presidente Kennedy", narra o parágrafo do capítulo 13 da segunda parte do livro. "Um professor da Universidade de Montana, em Missoula, conhecido pelo país inteiro, foi proibido de falar no campus sob a alegação de que isso poderia causar tumultos. Os professores foram avisados de que todo pronunciamento público deveria ser censurado pelo departamento de relações públicas da faculdade antes de ser feito."

A narrativa segue citando um governador que tenta demitir o diretor de uma faculdade e o corte de contribuições para a mesma instituição, numa recuperação de um cenário que muito lembra os sonhos do nosso Abraão brazuca, ministro em vigor no MEC envergonhado.

Este trecho do livro me lembrou de imediato de outros motociclistas sem destino que rodavam pelas estradas da contracultura norte-americana: os anti-heróis de Easy Rider que tanto quanto exerciam sua tentativa de encontrar um outro caminho para estar num mundo que julgavam falido em vários sentidos, eram hostilizados ao cruzar a porção oeste daquele país gigante. Não há como não traçar paralelos entre o filme de Dennis Hopper e o livro que se tornou uma referência e que só agora estou lendo dentro do projeto Leitura 30, em que me proponho a ler 5 livros ao longo de 30 dias, com 46 páginas ao dia.

O paralelo que eu não esperava - é comum hoje a gente abrir um livro para também  mudar de ares e esquecer um pouco, só um pouco, da loucura parapolítica que tomou conta do Brasil  -  era aquele outro elo, entre um trecho do Zen e a arte... e os extremistas semiletrados da triste Brasília oficial que temos hoje.

O Brasil acabou, como diz uma colega de trabalho.

O projeto continua, digo eu aqui, me referindo à minha tentativa de manter a sanidade em meio a essa pandemia de agressão e insensibilidade política. Política?

Até amanhã.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 7 - Rota de colisão


Certa vez, numa viagem de carro entre Brasília e Natal, eu e Rejane tomamos um susto daqueles quando estávamos na rodovia pouco antes ou depois da cidade de Serra Negra, já com aquela expectativa de passar logo por Caicó e enfim encerrar o trajeto de milhares de quilômetros chegando a Acari-RN. Tínhamos vindo pelo interior - e não pelo litoral - quando se gasta menos horas mas sempre se está exposto a mais perigos, como o risco de assaltos e fechadas em região do interior de Pernambuco. E sem o bônus que são aquelas estradas agradáveis com cheiro de mar e mato verde de quem vem pelo litoral a viagem se torna, embora mais curta, bem mais cansativa também.

O que acontece neste ponto da estrada? Um outro veículo vindo em sentido contrário, uma camioneta salvo engano da memória falha, repentinamente sai de sua faixa e avança em direção à nossa. Não era uma ultrapassagem ou tentativa de fugir de um buraco no asfalto, algo assim. Não era nada disso. Era absolutamente gratuito. O tal motorista parecia deliberadamente querer se chocar com a nosso carro, ambos em velocidade de não menos de 80 km por hora, talvez uns 100, era uma rodovia normal e com baixa circulação de carros, o que nos animava a rodar ligeiro, sem falar na vontade de chegar que bate no motorista quando ele se aproxima de seu destino.

O carro em direção contrária não desviava - pior, não demonstrava ter consciência do que estava fazendo, do risco em que estava nos colocando e também colocando a si próprio. Parecia que o desejo dele era mesmo avançar, e rápido. O que era aquilo? Um suicídio feito à base de um assassinato automobilístico? Seríamos eu e Rejane, no nosso carro, o instrumento que aquele maluco escolhera para se matar sem se importar se iríamos junto com ele?

Foram segundos de tensão altíssima até que, na última fração de tempo, sorrindo (deu pra ver o rosto dele num instante mínimo), ele desviou aquele carro assassino de cima da gente. Reaprumei o nosso carro - era eu que dirigia, ao menos na minha embaçada lembrança; e digo isso porque nas nossas viagens de carro é comum Rejane guiar mais do que eu, porque gosto de contemplar e ela não gosta de ficar parada - e seguimos adiante, comentando só muito brevemente o caso. Fora algo tão absurdo, que não havia como empacotar aquilo em palavras. Lembro que a partir daí nos tornamos, não por uma questão de cuidado mas de certo tipo muito específico de perplexidade, bem mais atentos ao que o asfalto nos apresentava. Colamos o olhar na rodovia, mal girando a cabeça de um lado a outro das margens. Foi uma experiência fulminante - ainda que breve, sem testemunhas e até hoje praticamente inexplicável.

Se a gente não tivesse, bem antes disso, o costume de fazer essas longas viagens de carro e a naturalidade de deparar com surpresas variadas no caminho - na maioria, ainda bem, boas - e aquilo talvez nos fizesse não querer mais fazer este tipo de viagem. Mas a gente sabia que viajar de carro - a gente, na verdade, até contava com isso - era um jeito interessante e divertido de passar por micro-experiências que de outra maneira não teríamos.

Conto isso aqui para dar conta da minha tarefa diária nesta segunda-feira sonolenta em que ainda não consegui atingir a meta das 46 páginas de um livro de estrada - um que está entre os mais célebres deste gênero. A meta faz parte do projeto Leitura 30, em que tento ler 5 livros ao longo de 30 dias, com o mínimo de 46 páginas diárias. Nesta terça deixei para o fim do dia a leitura e descobri que não é uma boa providência. O sono veio mais cedo, a meta balançou. Como este relato também faz parte dela, resolvi me adiantar e escrever antes as notas do dia.

Fedro, o personagem misterioso que vinha se insinuando desde as primeiras páginas do livro, voltou, estabeleceu-se e revelou-se, enfim. Não vou identificar pra não estragar a fruição de futuros leitores. O livro é um clássico contemporâneo, tem sempre alguém lendo.

E nele, li hoje, há um trecho que narra um episódio idêntico àquele que vivi com Rejane numa rodovia nas proximidade de Serra Negra-RN. Daí ter transcrito a história toda. Igual. Um carro que vem em direção contrária ameaça passar por cima do narrador. Há uma diferença só que faz toda diferença: ele, seu filho e o casal de amigos viajam de motocicleta (O livro, esqueci de dizer, é Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert M. Pirsig). Se a colisão se realizasse, eles seriam esmagados no asfalto preto e virariam aquela placa negra com espessura de papel que os desenhos animados costumam usar em situações assim.

Como nas aventuras do Papa-Léguas, lembram?

Até amanhã.

(e se eu não conseguir atingir as 46 páginas de hoje, não faz tanto mal, pois tenho alguma folga dos dias anteriores, além da chance de acordar amanhã menos indisposto e dobrar a meta).

domingo, 17 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 6 - Um road book



Hoje é domingo, já é noite, o dia mal deu para tudo o que eu planejava e por isso não vou me demorar. As metas foram mais do que cumpridas, com alguma folga, e entrei em um livro novo, o que é sempre estimulante. O mais interessante, embora não planejado, ou exatamente por isso, é que o livro de agora conversa com o anterior. Estamos ainda na mesma faixa de pensamento que busca uma nova visão do homem e seus desafios, da existência e suas quedas, do motivo de estamos por aqui nesta esquina da galáxia e de como podemos nos virar melhor sem queimar a cuca ou explodir o coração.

Estou lendo, com milênios e milênios de atrasos, a tal ponto que quando abro o  livro ainda consigo espirrar devido ao resto de poeira astral resultante do velho big bang, um road book. É o célebre Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert M. Pirsig, naquela edição que virou um dos ícones dos anos 80 para quem gosta de livros e nostalgia.

O livro parafilosófico e under auto ajuda que conta a saga do pai que desliza de motocicleta sobre estradas estaduais dos zéua com o filho na garupa - ambos tão fora de padrão quanto um personagem de qualquer um dos contos de J. D. Saliger, e aqui fica claro por que eu disse lá acima que mudei de livro, mas não de faixa.

Estamos ainda na ZYD É Outro Papo, uma emissora de rádio galáctica que congrega aqui um beat feito Kerouac meditando numa paisagem congelada, ali um Seymour Glass rumorejando diante do mar e da garotinha Sibyl. E por que não também um testemunho supimpa de uma temporada de brasileiros desprendidos na Europa dos anos 70 como o que faz Antônio Bivar em dois preciosos livrinhos - Longe daqui aqui mesmo e Verdes vales do fim do mundo?


Mas por quais motivos estou a falar deles aqui e agora, se nem estão na minha lista do projeto Leitura 30, em que pretendo ler 5 livros em 30 dias? Ora, porque têm tudo a ver, frequentam a mesma faixa de pensamento e de estar no mundo. Bivar e seus relatos estão aqui porque eu quero dizer que antes mesmo de abrir o Zen e a manutenção... é como se, sem nunca o haver lido, tivesse sempre a impressão de que se trata de uma releitura.

Deixa o livro se adensar além da página 77 que é onde estou que eu me prolongo um pouco mais sobre ele.

Para um domingo à noite, basta.

Acho que, antes de dormir, ainda vou dar uma espiada num Bivar.

Se é que não perdi os livros nessas mudanças que tenho feito.

Boa noite e até amanhã.

sábado, 16 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 5 - Os comedores de maçã




Existiram os cronópios e os famas, havia os xarias e canguleiros, e também se tem notícia dos comedores de maçãs. Estes últimos estão no derradeiro conto de "Nove Histórias" de J. D. Salinger, "Teddy".

É em mais um daqueles irônicos mas ao mesmo tempo macios contos que compõem o segundo livro do meu adiantado projeto Leitura 30, em que pretendo ler 5 livros em 30 dias, 46 páginas diárias no mínimo, e o restante quem vem lendo este diário aqui já sabe.

"Nove Histórias" é uma releitura, mas soa como inédito. Faz tanto tempo e guardei apenas vagas impressões, num amálgama que mistura estes contos, amigos queridos no bairro de Neópolis em Natal-RN, os felizes tempos de repórter de um jornal local, o ambiente universitário, a juventude e tudo o que você esteja disposto a colocar dentro dela.

Em "Teddy", estamos de novo às voltas com uma criança prodígio, um espanto de filosofia paralela que desperta a curiosidade das academias harvardianas e similares, numa conversa com um adulto que tenta tirar o máximo desse infante pensador.

"Comedores de maçã" é como Teddy apelida todos nós aqui do outro lado do paredão intransponível da mais pétrea racionalidade. Hum, eu sei que no Brasil atual, no mundo atual mesmo, racionalidade não é pouca coisa e não podemos nos dar ao luxo de desprezá-la. Mas nos idos de 1948, por mais que este mesmíssimo mundo tivesse praticamente acabado de sair dos traumas da II Guerra Mundial - J. D. incluído entre as vítimas emocionais - não havia nascido ainda, renascido ainda, ou se havia tinha consciência da própria estupidez e não ousava se colocar no debate público, essas criaturas que estão por aí agora nos palácios do poder, nas cátedras paralelas da ignorância e nos gabinetes do ódio espalhados pelos vastos continentes. Então, façam um parênteses de suspensão para entender o que a recusa da racionalidade representa na longa conversa que o menino Teddy, 10 anos, tem com um adulto entre autosuficiente e curioso num navio enquanto volta da Europa aos EUA.

Voltando: somos comedores de maçã - e eu não estou gostando nem um pouco de empilhar aqui essas informações básicas, não é bem este o propósito aqui, é bem outro - a partir do momento em que aceitamos, desde criancinhas, e sobretudo desde criancinhas, um punhado de informações sobre tudo, todos, o mundo, os objetos, o que o sistema educacional inteiro e as sagradas instituições nos enfiam goela a dentro. We don't need educacion, dude!

Mas não pense que o conto cabe numa frase escrita em letras berrantes de faixa de protesto. Na última das "Nove Histórias" abre-se um fosso budista entre o leitor e o que está nas páginas. Quem não conseguir levitar de um lado para o outro pode desistir da leitura. É disso que se trata - refundar o ser humano esvaziando nossas mentes de tudo quanto, acumuladores compulsivos, a fizemos transbordar. Sem didatismo, só na base da provocação literária, entendam bem.

Essa pandemia aí fora, com ruas vazias, escolas e comércio fechados, seriam uma boa representação, uma metáfora e tanto do que o menino Teddy quer dizer. O conto tangencia o místico - ou nos faz de bobos. Mas você vai querer ser feito de bobo quando perceber que não há outra maneira de transitar por ele. E é muito bom transitar por ele, caminhar sobre as palavras da conversa que o sustenta.

Com as 46 páginas de hoje - e umas cinco a mais de sobra - a meta foi cumprida. Que vergonha, nada mais contra os doces sermões de Teddy, brilhantemente construídos por Jerome, do que ficar contando páginas. Mas eu comecei o projeto e não sou de desistir.

Até amanhã.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

LEITURA 30, dia 4 - De amor e sordidez


Não vou lembrar quem disse, mas a frase, ou ao menos o sentido dela, está na ponta do cérebro e à beira da língua. É sobre o disco Kind of Blues, de Miles Davis. Alguém disse sobre o álbum que é o tipo da coisa que todo mundo devia ouvir antes de começar seu dia. Por tão belo, sublime, transcendente.

Pois desde hoje de manhã eu aconselho o mesmo quanto ao conto "Para Esmé - com amor e sordidez". Não faça a besteira de começar seu dia sem lê-lo. Garanto que seu dia será muito melhor, seu espírito vai flutuar entre as comezinhas ações do cotidiano, você vai recobrir seu cérebro com uma camada de uma qualquer-coisa que o torna imune ao coronavírus, ao tédio, às empulhações deste desgoverno, às atribulações de um dia comum.

Lido este conto, que faz parte do "Nove Histórias" de J. D. Salinger que estou relendo dentro do projeto de ler 5 livros em 30 dias, a que chamei de Leitura 30, você estará acima de tudo e de todos, no melhor sentido desta condição. Imunize-se já. Deixe cair sobre sua alma essa bênção. Vá ao céu sem pagar por pacote de viagem.

Não dá pra dizer mais nada, pra resenhar, pra sintetizar. Só posso dizer que é mais um dos contos do  livro, em que um adulto fora de padrão trava contato com uma criança ainda não totalmente contaminada pelos esquadros da boa civilização no que ela tem de menos bom.

Não há nenhum integrante da família Glass no conto. Ao menos não me pareceu, mas eu já disse que este é um livro em que não se pode garantir nada, e a realidade de trauma de guerra que atinge a família é um tema comum no livro todo. Mas a forma como esse encontro se dá, pessoalmente e por carta, vem revestida de uma sinceridade tão pura que faz cada um de nós, leitor, sentir-se sujo por seja lá o que tenhamos cometido ou  não. As conversas que o conto conjuga produzem uma espécie de sublimação sem paralelos - seria essa a palavra?, sublimação?, é preciso e ao mesmo tempo meio inútil buscar palavras para dar uma ideia aproximada do que é essa curta história.

Com este conto, J. D. se superou. Vocês me desculpem mas acho que aqui há material superior ao tão consagrado "O apanhador no campo de centeio". Li pouco hoje, só umas páginas além da meta de 46 por dia,  basicamente este conto. Mas ele é tão vasto que a quantidade matemática realmente mostra sua evidente limitação.

Sei que muitas vezes vai ser difícil  manter a meta, não exatamente por cansaço ou outras tarefas pedindo minha atenção. Refiro-me aqui ao poder de sugestão dos grandes textos que, mesmo em reduzidas páginas, pode lhe saciar a fome estética e emocional de tal maneira que você prefere parar por ali.

É esse um dos muitos efeitos de "Esmé - com amor e sordidez".

Tem que ler, tem que ler.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Leitura 30, dia 3 - Os Glass estão chegando


Depois de Seymour, o por assim dizer líder da família, reencontrei hoje mais um integrante do clã Glass. Mais de um até. E outra criança com quem eles constroem aqueles diálogos de outra dimensão.

Reencontrei - não lembrava dela, e não consigo, por mais que tente, escrever isso aqui sem intercalar impacientes travessões - Boo Boo, irmã de Seymour. Com ela, encontrei Lionel, um garotinho de 3 ou 4 anos que vem a ser sobrinho de Seymour Glass. A conversa de Boo Boo tentando conseguir de Lionel a permissão para entrar no bote onde o garoto se encontra, em frente à casa de praia onde ela e o marido estão neste momento - Boo Boo é a mãe de Lionel, se eu ainda não expliquei - é uma daquelas cenas soltas, algo non sense, mas que prefiro chamar mesmo de inclassificável, com que J. D. Salinger constrói livros como este "Nove Histórias", que leio no terceiro dia do projeto Leitura 30, que inventei por causa da pandemia e do distanciamento social etc etc e etc e tal. 

Aos pouquinhos, com acontece diante das narrativas de Salinger, a gente vai juntando peças, diálogos, descrições ligeiras de personagens (mais impressões vagas do que físicas) e quando vê está tomado pela literatura do homem. Too late, my dear.

Já disse ontem que isso é uma releitura de algo que muito apreciei milênios atrás. E que tenho memória de formiga, o que me beneficia com um esquecimento reparador e imune a coisas do tipo já-sei-o-final. Não lembrava, por exemplo, que há outras figuras nos contos que não fazem parte da família Glass. Pra mim todo mundo que pingava nas páginas desses contos breves e marcantes embora sempre revestidos por uma camada de imprecisão estava relacionado a Seymour. 

"Logo antes da guerra com os esquimós", o terceiro conto, espiona, tal uma câmera escondida, os desentendimentos entre duas amigas após um jogo de tênis numa área rica de Nova York, aliás, o cenário do livro inteiro e lar dessas figuras quase cubistas por tão diversamente formatadas pelo recluso escritor. São histórias que parecem começar pelo meio e sempre acabar um tantinho antes do que chamamos propriamente de fim.

Interessa a J. D. Salinger e seu leitor cativo o miolo da ação - embora esta também seja quase nadinha. Reinam as impressões, o quadro saturado com camadas de tinta sobrepostas quando visto de perto mas que, a um distanciamento certo, repentinamente revela um painel inesperado. J. D. Salinger é um pintor que usa palavras, frases e muitos, muitos, muitos diálogos. Tão naturais que parecem estranhos. Nossa frágil ou bruta humanidade que teimamos em não admitir ou reconhecer. 

Além disso seus contos sempre guardam espaço, em dado momento, para a entrada, pé ante pé, de personagens que chegam assim, de mansinho. Quase não são notados de início e vão crescendo, ocupando o espaço escrito e de repente percebe-se o quanto são importantes - embora, na maioria das vezes nem precisem falar diretamente ao leitor. Necas: são outros personagens, aqueles que abrem os contos com suas conversas compridas, quem diz tudo sobre eles - e geralmente de maneira equivocada. Mas de uma tal maneira errada que você, leitor aqui do outro lado, acaba sacando de imediato quem é, realmente, aquela pessoa de quem falam. É assim com Seymour, achincalhado pela sogra num papo ao telefone; é assim com um certo Walt que se intromete na conversa das duas amigas em "O tio Novelo em Connecticut". Será assim com Lionel em "Lá no bote", antes que o próprio garoto - que soa como a reencarnação do tio que se suicidara no conto inicial, mas a ordem dos acontecimentos ao longo do livro não se liga em cronologia tradicional - diga ele próprio suas falas. 

Outro fetiche é encaixar uma história dentro da outra, assim como passar de uma situação a outra, vizinha daquela. Dois ambientes, dois diálogos entre duas duplas de personagens e J. D. Salinger expõe seu jeitão esquisito de encarar esse mundão, sem escapar das marcas que a participação na guerra na Europa lhe deixou. Estruturas simples onde ele comprime em gestos, atos e frases cotidianas as imperfeições e possibilidades humanas feridas pelo mau estar de toda uma era. 

Hoje eu fiquei nas 46 páginas de praxe. Meta mínima. Tinha trabalho a mais do que esperava. Não sobrou tempo pra avançar. Mas o projeto era pra isso, pra não falhar, não abrir buraco no desfolhar das páginas, não atrasar o cronograma. 

Tenho alguma frente, se lembrar que no primeiro e segundo dias fui além do estipulado. 

Até amanhã.

* Por que a atriz de "Acossado" serve de ilustração ao post? Porque se fuma muito nos contos de "Nove Histórias". É uma chaminé literária cobrindo tudo com camadas e camadas e camadas de subjetividade. 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Leitura 30, dia 2 - Família Glass

No segundo dia do desafio Leitura 30, já ganhei um bônus: levantei mais cedo, como há milênios não acontecia.

Enfrentei a bruma matinal do quarto, a névoa densa do banheiro e a friagem levemente ensolada da varanda disposto a cumprir o quanto antes minha meta diária de 46 páginas. Disposto, na verdade, a continuar lendo "Otelo, o Mouro de Veneza" e saber com que artimanhas o ressentido Iago iria conduzir Desdêmona à morte, garantindo ao mesmo tempo para si o posto de tenente de seu senhor, a quem tanto odeia.

Mas como odeia o Iago. Como saboreia esse ódio. Iago iria se sentir muito confortável no mundo de hoje, fosse na Itália, nos zéua ou no Brasil. Iago iria fazer miséria em certo gabinete palaciano da era atual.

Não farei como seu William, não darei spoiler inútil, até porque todos sabem o desfecho. Mas se não ler, linha a linha, palavra a palavra, rubrica a rubrica, não saberá decerto. Antecipações e spoiler não apenas estragam, eles tiram o interesse. Sustam um leitor, suprimem um deleite. E não falo somente do enredo, pois que spoiler de natureza diversa também rumoreja por aí, nas esquinas mal iluminadas. Não vou entregar a encomenda. Não contribuirei para tanto.

Otelo está lido, o livro da primeira meta cumprido. Ah, mas é script breve, roteirinho de peça. É, mas segure aí no colo a densidade, meu caro, minha cara. Aguente o calor da batata literária nas mãos apressadinhas. Não é bem assim, não.

E, pleno de páginas em vantagem - foram 10 a mais novamente até o fim do texto, e desta vez eu contei - lancei-me, já no período da tarde, fim de tarde, na aventura zen de reencontrar, depois de milênios incontáveis, a Família Glass de J. D. Salinger.

O primeiro conto de "Nove Histórias" já é, de cara, "Um dia perfeito para peixes-banana". Um suicídio na décima página (relativize já seu conceito de spoiler, e prometo não mais empregar esta palavra hoje). Um personagem que não se encaixa em nada já na narrativa de abertura. Reencontrei Seymour Glass, o velho e querido Ver-Mais-Vidro que a nova tradução ignorou (preferiu um fonético e estranho "Se mói glé") dentro daquele roupão à beira da praia às voltas com a menina Sybil, cujo nome eu não lembrava. Não lembrava de muitos elementos deste brevíssimo mas intenso conto de, o quê, dez páginas? A (falta de) memória há tempos trabalha a meu favor. Esquecer, em certos casos, é uma bênção.

Não vou sacanear meus parcos leitores: esclareço que "Nove Histórias" é um dos livros que o autor do super best "O apanhador no campo de centeio" escreveu depois do seu fabuloso sucesso, vivendo recluso e evitando fotógrafos (leiam as biografias, vejam os documentários, eles estão por aí), em torno de uma família de crianças-prodígio, superdotados intelectualmente que, adultos, desabam por igual no desajuste. A graça, que eu guardo da época em que li estes livros nos anos 80, é o ponto de vista desse povo à parte sobre a vida consagrada dos americanos totalmente integrados.

Seymour Glass e seus irmãos são como aqueles personagens dos filmes do cineasta Wes Anderson. Não se encaixam em classificações fáceis, desorientam o interlocutor, contrariam expectativas, olham para qualquer bobagem de uma maneira inesperada. Seymour, Franny, Zooey e outros se espalham pelos contos dos livros desta fase, espraiando-se de "Nove Histórias" até "Pra cima com a viga, moçada".

É uma literatura que lhe desloca para outros pontos de observação do mistério da vida. Se é que você, amigão, já não está lá - neste outro ponto. Se estiver, vai nadar de braçada naquele rio raso onde um dia um personagem praticou um suicídio simbólico.

Outro dia tive pena de doer de um jornalista aqui de Brasília. Teve que escrever uma resenha sobre o relançamento de "Nove Histórias". Impossível, ainda mais se dirigindo ao leitor do "Correio Braziliense". Não bate uma coisa com a outra. Coitadinho.

Bem, mas voltando ao projeto: com os dois primeiros contos de "Nove Histórias" dobrei a minha meta diária de 46 páginas que de fato já havia atingido só com a conclusão do "Otelo" (nada menos família Glass do que esta contagem, mas não vou largar meu projeto).



Nestas poucas páginas já deparo com um choque entre inocência e frivolidade, oposição brutal entre o primeiro e o segundo conto (O tio Novelo em Connectcut; e os títulos já lhe dão o figurino pra entrar na festa), numa conta que talvez tenha a busca de sentido e transcendência como ponto de chegada. Mas nem isso se pode garantir.

Nada se pode garantir quando se trata dessa alma à parte que foi J. D. Salinger e seus livros.

Vamos ver o que mais encontraremos amanhã.

Não me deixem alone, please.

terça-feira, 12 de maio de 2020

LEITURA 30, um desafio - Dia 1



Isolamento chegou, todo mundo inventou algo, desengavetou coisas que não fazia há tempos, botou em prática projetos pra amenizar os efeitos dos dias e dias tentando sair de casa o mínimo possível.

Pois eu também acabei arranjando aqui um "projeto" pra esse tempo, embora ao longo dos dias úteis não me sobre tanto tempo assim, já que no meu caso o tal do teletrabalho funciona e muito bem - às vezes tem mais trabalho do que quando eu ia fisicamente pra meu postinho de atuação, meu terminal que me dá saudade, meu cantinho na TV Câmara. Vamos ao tal projeto.

Tenho o mau costume de assistir aos videos dos booktubers e me divertir com a maneira como eles fazem quase um exibicionismo cultural enquanto falar mesmo da essência dos livros, do que eles trazem, representam, incentivam, expõem ou destacam oferecem de fato muito pouco. Mas é sempre bom esse povo todo falando de livro, ainda que se você fizer uma estatística vai notar que a maioria fala dos mesmos livros, os mesmos lançamentos, comentam e recomentam os mesmos clássicos numa verborraria tantas vezes vazia e que poucas vezes joga uma luzinha que seja em algo novo, um aspecto não notado, uma característica que o próprio passar do tempo acaba dando a livros tantas vezes lidos. É fácil falar de clássicos - não se corre riscos.

Gosto dos booktubers, não desejo o mal deles, acho que mesmo mascando clichês já sem gosto pelo tempo decorrido eles ainda dão alguma contribuição num país de tamanha indigência literária (não por parte dos autores, mas dos leitores, ou da falta deles), mas dos que vi até agora dificilmente tem um que se arrisca e chega aos escritores não tão conhecidos, pouco badalados e que merecem pelo menos um pouco de curiosidade por parte dos leitores. Sinto muita falta da nossa Clotilde Tavares, que injetava um pouco de inteligência - e rock and roll, se me entendem - neste panorama das moças e rapazes que querem se tornar referência para a indicação de livros ao público em geral. Numa palavra, falta personalidade aos booktubers.

E chega de preâmbulo: o fato é que, navegando entre booktubers, encontrei um que anuncia um plano mágico sobre como ler 5 livros por mês. Eu fiquei atraído na hora. Mesmo levando em conta que talvez, quem sabe, quando o trabalho não puxa tanto, eu consigo ler 5 livros por mês - 5 não, mas 3, ou melhor, 2 - sem planejamento. O fato é que, na falta de "projeto" melhor para, no futuro, contar aos netos e bisnetos como foi que eu enfrentei bravamente aquele período da quarentena contra o coronavírus, resolvi aderir ao desafio.

Não é complicado, não é milagre e pode servir pra muita gente. Não tô falando de gente que não lê, que desiste depois da página 20, público iniciante. Não, pode servir pra mim também, leitores bagunçados como eu, pra otimizar, pra disciplinar melhor o tempo, pra solidificar um hábito que já tenho mas nem sempre se rende à distribuição das horas e tarefas do dia.

O cara faz uma matemática que torna menos difícil, digamos assim, alguém ler 5 bons livros por mês (entre pequenos, médios e pelo menos um "grande", tipo 400 páginas em média). Pegue os livros e some o número de paginas de todos eles, depois divida por 30. Vocês me perdoem as considerações numéricas meio acacianas mas desde tenra idade eu tenho um respeito pela matemática que me obriga a ser de um didatismo quase pedestre quando trato com essa matéria. Se não for assim, eu erro. E erros de matemática já me deram grandes prejuízos pessoais, acreditem (tipo transpirar de nervoso por necessidade de tirar aquela nota alta, quase máxima, para passar de ano na 7a serie ou no 2o ano do ensino médio, e chega de confissões).


O segredo aqui é que, feita a divisão, em média o resultado vai dar entre 40 e 50 páginas - que é o que você precisa ler por dia (o mínimo, bem entendido) para que, completados os tais 30 dias, tenha afinal lido aqueles 5 livros que lhe pareciam tão difíceis de atravessar.

Peguei minha caderneta e a calculadora do celular e joguei-me ao mar das letras e dos números.

Empilhei os livros que desejo submeter a essa exótica experiência:

-Otelo, a peça de Shakespeare (148 páginas)
-Nove Histórias, J. D. Salinger (que quero muito reler, 206 páginas)
-The Last Olympian, Rick Riordan (o último da série de 5 livros que ainda falta ler, 381 páginas na edição em inglês)
-Zen e  arte da manutenção de motocicletas, Robert M. Pirsig (um livro que sempre quis ler e só agora consegui um exemplar via Estante Virtual, 388 páginas)
-A Arte da Ficção, David Lodge (um ensaio que despertou minha curiosidade publicado na série de bolso da L&PM, 236 páginas naquela letrinha miudinha lá deles).

Somando tudo e dividindo o número de páginas que tenho pela frente por 30 dias, deu 46 páginas (arredondei, na verdade deu um decimal insignificante) por dia. Moleza.

É ou não é? Rapaz, em livro bom, da metade pra frente, a gente tendo tempo passa das 100 páginas facim, facim. O problema, desconfio, são os dias em que a gente, assoberbado pelas tarefas do cotidiano, esquece ou não consegue ler aquele livro que está bem interessante até.

Como sou avesso à rotina, esses buracos de dias sem ler são muito comuns pra mim. Quem sabe com o "projeto" eu resolvo isso?

Esta terça-feira, 12 de maio de 2020, foi o primeiro dia. A reta de chegada fica no dia 12 de junho. Será que vamos conseguir? Ou conseguiremos até antes, como diz o booktuber lá nos videos que é muito comum acontecer. Primeiro dia. Fui bem? Sim, senhor, li bem mais do que as 46 páginas iniciais de "Otelo", porque o danado do Shakespeare, com um bom roteirista objetivo e ligeiro, não perde tempo e vai direto ao ponto. Duas páginas e a traição armada por Iago já iça velas e ganha o mar da superfície das páginas. E então você vai junto e até esquece da meta mínima e quando vê já está quase a desconfiar da terra à vista ali adiante.

Descobri que em Otelo, Shakespeare...

1) dá spoiler, na boa. Mais que isso, usa o spoiler abertamente pra prender o leitor (no caso o público do teatro, vocês me entendem). Iago, em conversa direto com quem o lê ou assiste, faz igual a Ricardo III e adianta o que pretende fazer. Dizem que o público típico de novelas adora spoiler, ao contrário do público típico de séries tipo Netfix e similares. Pois o público típico de novela ia adorar Shakespeare Clair na sua técnica de dizer antes, na verdade um falso spoiler, porque o personagem diz o que pretende, adianta alguns métodos, mas a realidade de como isso vai se dar na prática só vamos saber lendo. Funciona que é uma beleza.

2) O cara é muito bom de falas. Tem umas que você pode usar na vida pessoal. Exemplo: "Jogue suas conjecturas na goela de Satanás, que é de onde você as tirou".  Nas 24 horas dos turbulentos dias atuais, não faltará oportunidade pra você surpreender os idiotas que lhe cruzam o caminho com arremedos de ideias, tipo terraplanistas de várias colorações, saindo-se com um frasão deste. E nem precisa dar o crédito. O ignorante vai achar que você é um gênio.

3) Shakespeare é autoajuda, e das melhores. Ilumine-se com este trecho: "Lamentar um infortúnio que está morto e enterrado é dar o passo certo na direção de atrair para si novo infortúnio". Palavras do Doge de Veneza na Cena III do I Ato.




4) Como Shakespeare faz para que Desdemôna, tão doce, tão bela, tão branca e tão rica seja seduzida pelo negro e guerreiro Otelo, pintado pelos outros personagens como pouco mais do que um valente homem de batalha despossuído de outros dons ou talentos? Ora, usando a mesma tática daquele célebre mito literário das mil e uma noites - contar histórias. Narrar é seduzir, é o que o bardo acaba dizendo na cena em que Otelo explica aos demais homens como "pegou" a donzela filha do senador Brabâncio. "Agradeceu-me e pediu que, no  caso de ter eu um amigo que a amasse, ensinasse a ele como contar minha história, e isso bastaria para enamorá-la", diz o negão na lata diante dos branquelos incrédulos. Foi contando as aventuras que viveu que Otelo se aproximou da futura esposa.

5) e tem mais um  pouco de autoajuda, que eu não resisto porque é bom demais: "Como são pobres os que carecem de paciência! Que ferida alguma vez cicatrizou que não fosse por etapas?" Palavras do canalha Iago, que pode ser uma peste em matéria de má influência, mas não é burro nem um pouco.

E assim foi, entre sentenças tão instigantes, o meu primeiro dia do projeto Leitura 30, vamos botar um nome pra coisa pegar e impor respeito. Já disse que não sou afeito à rotina, mas farei um esforço sobreliterário pra todo dia vir aqui e contar como foi cada dia desse desafio.

Para o primeiro dia, um saldo adiante de umas 10 páginas (não calculei, porque as obrigações normais do dia chegaram e não permitiram essa exatidão), já me dou por animado.

Torçam por mim e até amanhã.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

CLANDESTINO AO SOL


Apesar das 11h da manhã, a rua estava deserta. Um sol de inverno forte lavava fachadas e calçadas, mas o fato de todas as lojas, bares e restaurantes estarem fechados, portas cerradas, dava à manhã um ar de noite alta, madrugada até. 

Passei com o carro lentamente, pra não errar a localização do estabelecimento. Não são muitos como ele, mas a confusão entre lojas de tintas, outras de molduras, restaurantes self service, de produtos automotivos e assemelhados confunde quando a gente passa assim, olhando pela janela a 30km por hora. 

Achei. Reduzi a velocidade mais ainda quando vi um faixa de pano amarela, daquelas chamativas, com dois números de telefones - um celular e um fixo. Que bandeiroso, pensei. Precisava tanto? 

Mas também pensei na mesma hora que poderia ser uma tática  para provocar justamente o efeito inverso. Tanta bandeira servia para, pelo excesso, esconder o lugar. Um aviso de papel comum, desses com página de caderno pautado arrancada às pressas e mal colado com durex na parede poderia ser muito mais suspeito. Coisa escrita a caneta bic, como fazem os presidentes que querem posar de gente comum no poder. 

Ok, uma faixa publicitária chamando atenção para o próprio lugar ali à frente. Como já vi aquilo com o carro em movimento, o cérebro, esse ser desconfiado que trazemos trancafiado na quarentena eterna da caveira que um dia seremos, demorou para me mandar parar o carro numa vaga. Nenhum problema, pois que são tantas as vagas nessa temporada de vírus e pestilências políticas. 

Parei o carro, por efeito da minha habitual falta de reflexos mais imediatos, uns cem metros além do estabelecimento. Alguém poderia observar que fiz bem, que foi pra disfarçar um pouco. Não foi, mas acabou sendo, poderia ter sido. O fato é que ninguém me seguiu enquanto eu saía do carro e caminhava lentamente para diante da faixa amarela.

Vejam, não sei quem poderia ser mais bandeiroso naquele momento, se a faixa amarela gigante ou eu mesmo ali diante dela, copiando os números dos telefones num aplicativo do celular. 

Até porque foi uma operação demorada, indigna de qualquer pessoa que precise sobreviver passando despercebido em tempos de ruas desertas e desconfianças de várias naturezas. Ocorre que, vista ruim como sempre fui, o reflexo do sol alto me atrapalhava, criando, se é possível dizer assim, uma sombra de claridade na tela do aparelho onde eu mal conseguia distinguir os números que tentava escrever.

Naquele momento, eu poderia ser facilmente cercado por fiscais, ou policiais ou quem quer que seja. Completamente desarmado como alguém que tenta se concentrar em algo tão absorvente como é um telefone celular. Você se ausenta de tudo, alguém pode apontar uma arma para você que não há, ao menos a princípio, qualquer reação. Nem medo - o telefone como que chupa nossa atenção, como se fôssemos adolescentes vendo pornografia em livros proibidos sob a carteira durante a aula de português. 

Não sei como, escapei de mais essa. Ninguém me deteve, não passou nenhum outro ser vivente pela rua, o sol continuou inclemente sobre a avenida, o meio-fio, a calçada e as fachadas das lojas fechadas. 

Naquele momento, titubeei - admito. Olhei pra fachada com aquelas portas puxadas até o chão, aquelas dobras de metal que pareciam me lançar um afaste-se terminativo e refleti, sempre correndo a cada segundo o risco de ser abordado sabe-se lá por quem. E decidi.

Lutando contra a claridade das sombras que vitrificava mais ainda a tela do celular, puxei o teclado virtual e digitei um dos números que havia anotado - o mesmo da placa amarelona e chamativa à minha frente. 

Enquanto digitava, reparei que uma mulher comum, dessas do povo, mal vestida e feia, certamente funcionária do self service vizinho que provavelmente estava fazendo entregas de casa em casa por um desses coitados que varam a cidade de bicicleta, bateu na porta de metal como quem, com o punho fechado, chama na porta de uma pessoa qualquer. Como estava com atenção voltada para digitar o número do telefone, não consegui distinguir bem, mas notei que houve uma brevíssima conversa entre a mulher e alguém dentro do estabelecimento. Assim me pareceu porque a mulher logo voltou para a loja vizinha, ou restaurante que fosse, como quem está satisfeita com a resposta que teve. 

Isso me encorajou mais ainda a ligar para o número, uma vez que acabara de descobrir que, sim, como eu imaginara, havia gente dentro do estabelecimento. 

De fato, fui atendido ao primeiro toque. Perguntei se de alguma forma estava funcionando, a voz no outro lado - voz masculina, comum, tipo garçom ou vigilante de banco - disse que sim. Perguntou se eu sabia o endereço. "Estou aqui em frente, agora", adiantei, sem saber que tipo de risco estava correndo. Quando vi já havia dito. Veio um "então, pronto", olhei para o céu em busca da proteção que pudesse ter e dei o primeiro passo.

O primeiro passo. Quanta história não já rendeu, desde aquele provérbio chinês que os comunistas adoram. Toda caminhada tem um primeiro passo, precisa de um primeiro passo. E eu que nunca fui comuna por falta de coragem, nunca fui louco de direita por ter decência e juízo, ali estava eu também precisando dar o célebre primeiro passo. A vida não quer saber se você tem vocação para herói ou sina de perdedor - um dia, mais cedo ou mais tarde, aquela convenção que sempre lhe pareceu idiota vai lhe confrontar, exigir que você faça algo de concreto, vá além do sim, pois é, então e use na vida um vocabulário menos dependente de verbos de ligação, meu caro. Aja. Dê o primeiro passo.

Dei-o. E procliticamente me dirigi ao estabelecimento, ainda sob a bênção dada não sei por quem de não ser visto ou notado. Ao me aproximar da porta, esta foi levantada - mas apenas na parte central dele, que era dividida em três blocos metálicos - com aquele rangido que é tudo o que menos se espera em momentos como esse. 

Um rosto comum, de mulato brasileiro cuja vida se dá entre limpar uma mesa de bar e vender pacotes de pipoca nos sinais de trânsito, saiu lá de dentro e vinha me abordar. Na hora, lembrei que deixara a carteira com dinheiro e cartão no carro, assim como a máscara facial de proteção contra o maldito vírus. 

"Um minuto só", pedi, explicando que precisava voltar ao carro. Somente naquele momento percebi o quanto o carro estava longe e o tamanho do risco que voltara a correr num deslocamento simples que em tempos normais seria absolutamente insignificante. Cada passo foi como um bateria de escola de samba marcando o ritmo no coração. Na avenida W3, via que corta o Plano Piloto de Brasília, desfila a GRES Unidos da Cardiologia Temerária. Demorou séculos, mas consegui pegar a carteira e máscara, fechar o carro e me ver, com alívio, na Praça da Apoteose deste anticarnaval que vivemos. 

Entrei no local e a porta foi fechada quase raspando meus calcanhares. Imediatamente. À minha vista surgiram três outros mulatos, magros, legítimos brasileiros. Um sentado atrás de um balcão, outro numa cadeira mais atrás e um terceiro andando em minha direção. Parei e esperei.

Ele me fez um sinal para ir até uma parte na lateral do estabelecimento. Fui, seguindo o mulato. Quando vi estava diante de uma escada. "É lá embaixo?". "Sim". 

Desci rapidamente seguindo o moço, ainda meio perplexo para dar conta de analisar o ambiente. Ao chegar ao subsolo, notei uma mesa de sinuca no fundo, com tacos pendurados nas paredes. E nos balcões, todos aqueles apetrechos cortantes, perfurantes, gumes de vários formatos e dimensões, além daquele cheiro entre hospital e farmácia, reforçado pelo fato de estamos em um subsolo sem janelas. Em algum recanto deveria haver um exaustor. 

Acomodei-me na cadeira e, depois de tanta tensão, cedi à necessidade do momento. Entreguei ao céus o resto das minhas reservas e esperei pra ver qual seria o resultado daquela aventura praticamente clandestina. 

E não é que o barbeiro fez o melhor corte de cabelo que já tive em toda a minha vida? Ah, essa quarentena e suas surpresas. 

P.S.: Ao sair, perguntei sobre dias e horários de "funcionamento" e fiquei sabendo que apenas parte dos barbeiros trabalham para não haver muita proximidade nem entre eles nem entre os clientes. Há uma escala, mas de segunda a sábado corta-se cabelo e faz-barba ali. O mulato que me abriu a porta só fez um último comentário antes de eu sair, dizendo que a qualquer momento poderia vir uma nova determinação para eles não funcionarem. Aquilo me trouxe de volta todas as suspeitas daquele início de manhã de maio e fiquei me perguntando, mas será que eles realmente têm autorização para atender ou eu acabo de cometer uma desobediência civil? 

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