terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O mal, desde sempre

  
Morris West era um escritor de best seller que fazia sucesso entre os sócios do extinto Círculo do Livro. A diferença era que enquanto seus pares se esmeravam em tramas rocambolescas - mas irresistíveis como as dele - sobre golpes de estado, mercenários, conspirações, espionagem e guerrilhas (as fontes inesgotáveis do grande livro da Guerra Fria), West sapecava nas páginas de seus romances figuras como padres afundando em dramas de consciências, cardeais desconfiados de um candidato à santidade e, este com quem topei agora, tardiamente mas não menos prazerosamente, um empresário às voltas com a violência das ditaduras que sufocavam a América do Sul, e particularmente a Argentina, nos anos 70. 


É vero: à beira dos 50 anos, capitulei diante de "Proteu", um livro de Morris West que não conhecia, não resistindo à leitura das três primeiras páginas, de pé, entre as estantes da Biblioteca da Câmara dos Deputados - essa mina de ouro; a biblioteca; não a Câmara, especialmente nos dias que correm. Não tinha mais como parar de ler. E tudo por causa dos dias que correram há muitos e muitos anos. Reencontrei com satisfação Morris West e seu idioma narrativo que funde dramas pessoais e familiares com painéis de momentos dramáticos da historia da humanidade. A título de enredo, só preciso dizer que "Proteu" trata de um empresário como não existem mais, tão incomodado com a sombra da maldade que cai sobre o mundo que resolve montar uma organização destinada a realizar atos de libertação dos mais oprimidos dos oprimidos - os presos políticos, seja na extrema direita ou esquerda (estamos na Guerra Fria, lembrai-vos, queridos irmãos). O cara é uma  espécie de integrante às avessas da nossa famigerada Operação Bandeirantes, para ficar no contexto da época. Enfim, a ficção sobre esse grupo que em muito lembra o do "vitória na guerra" de João Emmanuel Global vai dar numa chantagem do tipo ou-solta-todo-mundo-ou-mando-o-mundo-pelos-ares, com as consequentes discussões éticas que tal dilema desde sempre representou. 

Mas o texto de West reveste tudo de uma ironia fina que nem sempre - ou quase nunca - se encontra com tal intensidade nos best sellers do período. Os diálogos são pimenta pura - com os personagens usando a língua afiada para se espetarem uns aos outros, no que vão revelando a extensão da maldade que é o tema maior do livro. Por isso a leitura, com gosto de releitura, encontra uma atualidade perene mesmo para quem não pega num exemplar editado pelo Círculo do Livro há uns trinta anos. Grande reencontro sentimental - mas é bem mais que isso. Mal sabia West que aquela maldade crônica da raça ainda teria espaço para aumentar e se reinventar, de maneira que seu anti-herói jamais poderia conceber. Aqui mesmo na Câmara em cuja biblioteca encontrei o livro temos um exemplo perfeito.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Playlist da Hamaca

Verão, férias, viagens significam, tantas vezes, músicas. Um repertório específico que funciona como um calendário sentimental. Uma memória afetiva que remete a idades, fases, interesses, etapas, desafios, mudanças. O playlist abaixo, que pretende ser o primeiro de uma série aqui na Hamaca, junta um  conjunto de canções que se enquadram neste painel - um horizonte que se abre nestes inícios de novembro, esses preâmbulos de dezembros e anúncios de janeiros, quando os ares das festas de fim de ano vão enchendo a atmosfera de uma sonoridade nem sempre propriamente nova, mas renovada até quando lembra décadas passadas. Então, pra começar, um hino pacifista bem a propósito desses dias pós-atentados de Paris, com o velho Paul propondo um cachimbo da paz que nunca perde a importância. Depois, um hit de um verão dos primeiros anos da década de 80, com a energia de Elba Ramalho. Daquela mesma época vem uma balada de Vinícius Cantuária como nem sempre se ouve mais no rádio FM. Depois dele, outra balada, com Adele e a lembrança boa de umas férias mais recentes, sonorizada por aquele disco/DVD que todo mundo ouviu até enjoar - e não enjoou. Fecha a lista outra balada, essa de extração popular, do finalzinho da década de 70, que seria resgatada por Zeca Baleiro num desses seus divertidos e sensíveis discos tipo Lado Z - a "Chuva" de um esquecido Gilson.


1.PIPES OF PEACE - PAUL MACCARTNEY


 2.BATE CORAÇÃO - ELBA RAMALHO


3.COISA LINDA - VINÍCIUS CANTUÁRIA 




4.DON´T YOU REMEMBER - ADELE
 


5.CHUVA - GILSON


domingo, 15 de novembro de 2015

O velho, o livro e a política



O velho Getúlio, sempre ele. Livro vai, livro vem, o Leitor Bagunçado se vê às voltas com a figura gorducha, complexa, contraditória e - talvez por tudo isso junto - mais característica não só da política como da História do Brasil. Na juventude primeira, era o Getúlio odiado e odioso que massacrou com frieza a esquerda dos anos 30 - aquela que, sabe-se lá como, achava que o país estava prontinho pra uma revolução comunista. Do painel geral de auto-enganos sobressai mesmo é a violência pessoal e específica, portanto de caráter desesperadamente humano, contra Olga Benário. E quem não chorou lendo as últimas páginas do livro do insuspeito Fernando Moraes que atire o primeiro boneco inflável de Lula. 

A bibliografia dos 20 anos - Memórias do Cárcere; O Cavaleiro da Esperança e similares - reforçava essa visão de seu Getúlio. Mas o tempo passa e a figura Getulina vai adquirindo, junto com as vivências e leituras, contornos mais complexos. Percebe-se a figura de um estadista mínimo (o que no Brasil é sempre algo a destacar) diante um paredão de atrasos de cores variadas que faz com que a gente veja o quanto aquela esquerda liderada por Prestes lia errado o desenho dos seus reais adversários. Se ele próprio, Prestes, reviu isso, quem somos nós pra não relativizar. Espetamos então aquele alfinete revisionista no boneco inflado do ex-ditador. Pois agora, depois de tudo, vem Lira Neto com sua série biográfica em cima do muro no melhor sentido da expressão pra balançar de novo o edifício do getulismo. 

No primeiro volume ficou intacta minha admiração pelo gaúcho quem marcou o Brasil, arrancando com a revolução de 30 as bases solapadas de um fazendão que talvez nem merecesse o nome de país. Mas agora, nas barbas do Estado Novo para onde nos leva o volume dois, tá difícil: não é volubilidade de opinião, é que Lira é bem danado em mostrar como, aos pouquinhos, uma certa de mistura de política pequena com bajulação gigantesca e falta de parâmetros legais que garantam o que quer que seja é capaz de, ato após ato, pequena violência aqui com mais outra ali, construir um perfeito sistema opressor. Eu pelo menos me acostumei a ver o Estado Novo como algo muito bem engrendrado, esquematizado, arquitetado de maneira a cobrir toda a atividade política do país - como algo feito assim numa megaconspiração de reunião madrugada a dentro a portas fechadas. E, para além do ato espúrio de um homem só escrever uma "constituição", não foi bem assim. Foi aos poucos, como na vida. 

Quando se viu, a empanada do monstro cobria a tudo e a todos, sufocando, futuramente, o próprio Getúlio que, no acumulado de feitos, desfeitos e não feitos, encurralou-se por meio dos inimigos que a política sempre planta. A política, esse quebra-cabeças de peças que ora de organizam de um jeito, ora de outro (as nuvens de Tancredo,lembram?). São variáveis demais e quando se puxa a corda excessivamente pra um lado pode aguardar que o empuxo contrário virá na certa. Biografias feitas no capricho são ótimas para mostrar esse fenômeno recorrente e, infelizmente no nosso caso, tão repetitivos.

sábado, 14 de novembro de 2015

#começar de novo



Henfil desenhava rápido porque a hemofilia o obrigava. Daí os traços que legou serem sempre ágeis qual desenho animado, o Zeferino e a Graúna quase voando no papel das charges e tiras. Não sou Henfil mas me vejo em situação similar: uma crise inesperada do que uns dizem ser hérnia de disco e outros apenas o desgaste natural da coluna após quase 50 anos de uso me impede de fazer, por longo tempo, atividades que estavam entre as minhas preferidas: ler e escrever. 

Ler porque sem querer a cabeça cai, o pescoço se dobra e a hérnia ou seja lá que nome tenha é contraída, causando dor. Escrever porque o computador, com teclado e monitor em posições quase opostas e ângulo assassino para a  minha pobre cervical representa tudo isso elevado ao cubo: por ora, é assim; usou, doeu. O preço é alto. Mas alguma coisa para além da coluna, da dor, da crise e da inflexão que ela provoca necessariamente nos meus hábitos e na minha visão do que é viver me traz de volta ao blog. Tenho necessidade dele para organizar minhas próprias ideias nesta transição que noto estar vivendo faltando menos de dois meses para completar meio século de vida. Se isso representar algum ganho também pra você aí do outro lado, por que não dividir? Mas o faria mesmo que estivesse apenas falando sozinho. 

A diferença agora é que os posts devem ficar mais curtos, ágeis, incompletos mas autênticos, compensando com a energia da rapidez a profundidade que a idade me obriga a deixar pra trás. Bem-vindos de volta e a gente vai se falando, em conversas mais ligeiras como o traço necessário de Henfil - sem maiores comparações, claro - mas também, espero, mais frequentes. Aqui a hastag é tipo #começardenovo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Minas brasileiras

Um clássico esquecido e folhetinesco ajuda a explicar, a partir da Salvador de 1607, o país do autoengano de 2015







Começou com uma piscadela casual para um desses livros compactados em arquivos gratuitos no leitor digital. "As Minas de Prata" tinha esse título atraente, novelesco, algo histórico e, cimentado pela autoria de clássico-de-banco-escolar (pelo menos, antigamente - ou seja, no meu tempo) José de Alencar, prometia uma leitura ligeira e nostálgica. Qual nada: depois de ler algumas páginas no Kobo, descobri-me alencariamente atolado em movediças areias de literaturas pregressas. 

O enredo - este é o tipo de livro que tem bem isso, um enredo - havia se grudado à minha mente tal como as trepadeiras das floras daquele colonial Brasil de 1607, nas cercanias da cidade de São Salvador, a bahia com h do romantismo histórico e épico que marcava o período. Não havia mais jeito de escapar. A única saída era fugir dos futurísticos erros de código do kobo que transtornavam a leitura, para além daquele português castiço que, como uma selva misteriosa, em muitos momentos também se revela não menos que bela. A ideia era procurar um exemplar de papel e capa dura, bem 1.0, para prosseguir no desfolhar das desventuras de um herdeiro em busca das tais minas de prata descobertas pelo pai que a vida tragou para os matagais da morte. 

Sem mais circunvoluções, descobri que "As Minas de Prata", de José de Alencar, é um livro e tanto: uma saga da colônia ao tempo em que todos - absolutamente todos - queriam enriquecer. Isso lhe diz alguma coisa sobre o presente independente daquela ex-colônia? Nem pra me fazer esquecer a sombra sinistra de figuras contemporâneas como um certo Eduardo Cunha o livro me serviu. Pois lá não está um jesuíta de conveniência, por sinal um dos principais personagens, que usa o púlpito e a igreja como trampolim para enfeitiçar o povaréu sem votos (religiosos, entendam bem), manipular os irmãos da ordem e alcançar o butim aqui representado pelas tais minas? 

Do novelão de Alencar, entre trechos de capa-e-espada que o acomodam bem no clima literário da época, emerge um panorama de país em formação que não fica nadinha a dever ao projeto, ops!, que dele resultou. Aí está um livro que poderia muito bem ter sido distribuído nesse domingo 16 entre os manifestantes mil - ou nem tanto - atrapalhados na confusão entre desejo de consumo, inconsciência política e frustração pura e simples mal direcionada. Como eles iriam se identificar, caso se dispusessem a ler.

Mas, ler, ah, amigão - ler são outros quinhentos anos. E sobretudo no caso de "As Minas de Prata", porque se trata de muito mais do que quinhentas intransponíveis páginas para quem, na Esplanada dos Ministérios, é incapaz de exercer o protesto político além do sol das 13h. E aqui preciso retomar o fio do início do post: ao buscar um exemplar analógico para prosseguir no que se convertera em difícil digital leitura (por causa dos erros de formato comuns quando se abre livros "grátis" em leitores digitais) descobri, perplexo, na Biblioteca da Câmara dos Deputados, que "As Minas de Prata" não é apenas um livro: são dois. 




Dois vitaminados volumes com mais de 500 páginas cada um. Pense numa novela. Aliás, pense mesmo: enquanto lia, descobri que, de tão folhetinesca, a história dessas minas de prata escondidas em algum lugar dos vastos sertões coloniais brasileiros fora tema de adaptação feita pra a tevê a carvão, com - óia - Regina Duarte, a manifestantezinha do Brasil, no papel da heroína. Coisas da TV Excelsior, acho - por sinal, emissora que outro projeto de poder autoritário, o dos militares, reduziu a ruínas; mas essas são outras aventuras. 

"As Minas de Prata", enfim, disponível para Kobo em transcrição sofrível mas encontrável em bibliotecas públicas em dois volumes analogicamente intactos, é um desses grandes livros esquecidos, mas que poderiam estar em qualquer lista dos títulos literários que ajudam a explicar o país do autoengano permanente, o Brasil de 2015.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Estrada estreita



O gênero é espetacular e norte-americano por excelência. Só por isso você já pode estranhar quando depara com um "filme de guerra" feito por brasileiros. A Estrada 47 é este filme, em cartaz. Mas tenho uma boa notícia caso você torça o nariz para a petulância brazuca de invadir tema tão segmentado, temendo entrar no cinema e ser sufocado por um filme de grandiloquência ridícula, do tipo que não tem vergonha de macaquear o cinemão gringo. Pois é, essa Estrada 47 não é nada disso - antes pelo contrário.

O que resulta dessa ousadia de afrontar gênero tão consagrado é um contículo de guerra, um drama contido e quase curvado de tão consciente de seu próprio atrevimento. Um pequeno e em muitos momentos quase covarde pelotão de pracinhas brasileiros consegue uma ligeira proeza ao reabrir uma estrada pavimentada por minas e meio que "libertar", para manter o clima de filme de guerra, uma pequena cidade italiana. 

Tudo isso é feito em compasso de novela literária, em andamento de crônica, ritmo capaz de se ocupar menos com heroísmos ianques e mais com minúcias humanísticas - veja-se por exemplo a curiosa e sensível história do pracinha nordestino, quase um conto menor dentre desse contículo em forma de filme. 

Em tudo, o filme diz que, na guerra ou no cinema de gênero, somos tal e qual o soldado Piauí: pequenos, titubeantes, medrosos no geral porém valentes quando uma circunstância especial e específica nos desperta a coragem. Desde os anos 40, esse cinema somos nós, com os intervalos entre parênteses do tipo Cinema Novo que nos fizeram célebres por períodos determinados. 

E como que para comprovar isso A Estrada 47 termina com uma metáfora visual perfeita e acachapante: a entrada triunfal do tanque norte-americano chegando com festa na cidade libertada (mas não por eles) e esmagando impiedosa a câmera fotográfica que registrou o pequeno feito dos soldados brasileiros. Se há patriotada aí, é de um tipo sutil, silencioso e acanhado - como nós todos quando temos a coragem de nos ver como realmente somos.

terça-feira, 10 de março de 2015

Quanto pior melhor, na Argentina!



 

Ao abrir a lista dos livros que vai lendo neste 2015 (veja ao lado), o Leitor Bagunçado se deu conta de duas omissões na relação do ano passado. Faltou colocar lá os dois romances do argentino residente nos EUA - e falecido há poucos anos - Tomás Eloy Martínez, aquele que eu, você, sua namorada e aquele seu primo distante já conhecem de "Santa Evita", a sensacional saga vivida (ops) pelo cadáver de Evita Perón entre mil esconderijos na pátria do tango. Pois bem: ano passado, entre tantos outros livros que o Leitor Baguçado - este servidor público de carteirinha - descobriu na Biblioteca da Câmara dos Deputados, estão "O cantor de tango" e "Purgatório", mais duas aventuras literárias do mesmo Tomás Eloy. 

Há menos humor - humor negro, é disso que se fala, mas humor - do que na história do que fizeram com o presunto da ex-primeira dama portenha, mas ambos os livros estão, naturalmente, impregnados daquele ar do rio da Prata que envolve a cidade dos ditos ares benéficos. "O cantor de tango" reconstrói a trajetória de uma sumidade do gênero musical ao nível de Gardel mas objeto de culto devido à dificuldade de vê-lo e ouvi-lo cantar. E no rastrear dessa figura tão fascinante quanto miserável - a alma de um país? -, Tomás Eloy vai desenhando as dores de sua pátria, construindo à distância - tanto quanto seu narrador, um professor americano - um mapa das desgraças capaz de deixar constrangidos a nós, brasileiros, contumazes cultuadores desse mesmo exercício de autodesprezo. 

Em "Purgatório", temos o reaparecimento de um desaparecido político, em registro borrado de surrealismo, com o mesmo objetivo, alterado o foco do período: aqui assiste-se às ditaduras dos anos 70 em todo o seu desfile de empresários corruptos, militares de pedra e ideólogos universitários prontinhos a justificar cada unha arrancada de cada zumbi subversivo. É um balde de desgraças prontinho para a mão leve de Tomás Eloy agitar pra lá e pra cá usando a força da palavra, esse privilégio de quem a tem e sabe usar para louváveis propósitos. 




Nos dois livros - mais do que na crônica do cadáver de "Santa Evita", que soa até divertido diante das sombras desses outros títulos - impressiona como podemos estar enganados quando achamos que só nós, rabugentos brasileiros, temos essa mania de falar mal de nós mesmos diante de qualquer desculpa, oportunidade ou vacilo. Os argentinos, está provado, também são craques nisso: a velha e falsa rivalidade, então, está mais uma vez revalidada. Pena que seja na disputa do quanto pior, melhor. Mas os livros, apesar disso, são ótimos.

Breves notícias do Leitor Bagunçado


O cara terminou, depois de 30 horas de leitura (o kobo da Cultura conta pra gente e dá o saldo no final), "O homem que amava os cachorros", esse tão badalado livro que dez entre dez leram. Uma reconstrução romanceada da vida do assassino de Trotski e de toda a série de fatos que terminaram com esse crime histórico, reverberando nos dilemas e decepções da Cuba atual e da União Soviética agonizante. Alguma coisa no clima "o sonho acabou, que merda". Tem um problema no texto de Leonardo Padura que me incomodou: o excesso de explicações, o abuso de comentário sobre os conflitos narrados, certo exagero na tradução simultânea sobre o estado de espírito dos personagens. Isso aumenta muito da metade do livro em diante. Passa do ponto: é como aquele tipo de filme que insiste em dizer a quem assiste sobre como deve reagir ao que está vendo. Um pouco menos e sairia ainda mais forte - porque, para além disso, é um livro de muita força.


O Leitor Bagunçado também terminou - e aqui, como a leitura foi no papel, não tem contagem de horas - "Uma certa paz", de Amós Oz: bela descoberta. Conflitos familiares num kibutz reverberam os impasses israelenses. Mas que prosa, amigo: nunca os elementos da natureza falaram tanto sobre o que se passa num livro, manuseadas pelo escritor como um exército expressivo poderoso e envolvente. Um amanhecer abarca a condição de uma família inteira, um fim de tarde rastreia em detalhes a angústia de ex-soldado. Para repetir a analogia com o cinema, pense num filme de Terrence Malick ("A árvore da vida", "Além da linha vermelha") e você vai se aproximar do que estou falando.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Listão do Leitor

 
É notório que a lista estava o tempo todo ali ao lado, no quadro fixo da template convencional que o blogger oferece: acontece que a publicação novamente aqui apenas fecha, delimita, enquadra em disposição final o que foi lido ao longo do ano anterior. Tem 4 Conys, 3 Mario Vargas Llosas, 3 Ruy Castros, 2 Jorge Amados e outros autores plurais. O primeiro J. M.Cootze e um volume de ensaios sobre Stanley Kubrick. Fique com essas e outras miudezas do Leitor meio Bagunçado, meio Organizado; e obrigado pela companhia (na ilustração do post, a Biblioteca da Câmara dos Deputados):
  • O PIANO E A ORQUESTRA - Carlos Heitor Cony
  • AS CONSOLAÇÕES DA FILOSOFIA - Alain de Bottom
  • O LEITOR APAIXONADO - Ruy Castro
  • PESSACH: A TRAVESSIA - Carlos Heitor Cony
  • INFORMAÇÃO AO CRUCIFICADO - Carlos Heitor Cony
  • ANTES, O VERÃO - Carlos Heitor Cony
  • AS AGRURAS DO VERDADEIRO TIRA - Roberto Bolaño
  • TREM NOTURNO PARA LISBOA - Pascal Mercier
  • 1822 - Laurentino Gomes
  • A VIAGEM DO ELEFANTE - José Saramago
  • CONFISSÕES DE UM JOVEM ROMANCISTA - Umberto Eco
  • CONVERSA NA CATEDRAL - Mario Vargas Llosa
  • TIA JÚLIA E O ESCREVINHADOR - Mario Vargas Llosa
  • TRAVESSURAS DA MENINA MÁ - Mario Vargas Llosa
  • CASA VELHA - Machado de Assis
  • MORRER DE PRAZER - Ruy Castro
  • AMESTRANDO ORGASMOS - Ruy Castro
  • TANTO FAZ & ABACAXI - Reinaldo Moraes
  • O PAÍS DO CARNAVAL - Jorge Amado
  • SÃO JORGE DOS ILHÉUS - Jorge Amado
  • A CULPA É DAS ESTRELAS - John Green
  • MEU DESTINO É PECAR - Nelson Rodrigues
  • JUVENTUDE - J. M. Coetzee
  • VERDADE TROPICAL - Caetano Veloso
  • CONVERSAS COM KUBRICK - M. Ciment
  • O SIGNO DA CIDADE - Bruna Lombardi (roteiro de filme)
  • O PALHAÇO - Selton Melo (roteiro do filme)

Os livros do ano do Leitor Bagunçado

A Hamaca, que claudica mas não morre (assim como o resistente Sopão), publica com atraso ainda maior do que o regulamentar a lista dos livros que mantiveram ocupado ao longo de todo o ano passado aquela pessoa que muitos de vocês já conhecem de algum tempo chamado Leitor Bagunçado. A novidade - já que a publicação dessa lista é um passatempo que já está virando uma marota tradição - é o fato de o Leitor Bagunçado, vide a lista a sair no post seguinte, estar se tornando cada diz mais... organizado! 

Se 2015 é o ano do apocalipse antecipado na política e na economia - cá entre nós, só concordo plenamente neste prognóstico quando se trata de outra área, a do comportamento, em que nos perdemos completamente numa falsa festa de consumo e ostentação - então não haverá nada de tão extraordinário no fato de o Leitor Bagunçado estar se transformando, em processo lento e gradual porém inegável, em Leitor Organizado. Quais as consequencias dessa mudança? Não se sabe, tanto quanto se ignora onde vai dar este 2015 de tamanho mau presságio. Como diria um personagem daqueles que figuram entre os preferidos do Leitor Bagunçado - ou melhor, a caminho de se tornar Organizado - só posso dizer que é assim que tem sido, à moda Chicó que muito me orgulha. 

Aos fatos: por que se diz que o Leitor Bagunçado começa a dar vez a este Leitor Organizado, como se uma nova era estivesse se imiscuindo entre as chapas do tempo de maneira a sutilmente alterar para melhor - não conte pra ninguém, mas ao contrário do que vige entre nós, brasileiros, sou muito fã de tudo que é organizado - o panorama, se não do país e do mundo, das distraídas leituras que preenchem o tempo e a cabeça especialmente quando a realidade lá fora não é muito auspiciosa? Diz-se, retomo, que o Leitor Bagunçado está a se tornar Leitor Organizado pelo mero fato de que na lista do que foi lido em 2014 constatar-se certa regularidade de autores, ligeira fidelidade em gêneros, aparente coerência em escolhas. 

Por exemplo: em 2014 o Leitor Bagunçado leu, praticamente em sequencia, quatro - eu disse quatro! - belas novelas de Carlos Heitor Cony. Alguém capaz de tamanha disciplina ainda merece ser chamado de Leitor Bagunçado? Chequem na lista que vem daqui a pouco: "Antes, o Verão", "Informação ao Crucificado", "Pessah: a travessia" e "O piano e a orquestra" (este, uma releitura estimulada pela descoberta dos títulos anteriores). Descobri que Cony é muito melhor romancista - e prefiro dizer "novelista" porque quanto mais enxutas melhores são suas narrativas sobre certa e pretérita classe média da zona sul carioca - do que comentarista de página 3 dos nossos pobres jornais de cada dia. Foi uma bela descoberta na qual o agora Leitor Organizado pretende se aprofundar: o próximo da lista é "Pilatos", o célebre e várias vezes rejeitado romance fim-de-tudo de Cony, que também encontrei, como os demais, na biblioteca da Câmara dos Deputados, onde labuto. 

Falando da biblioteca da Câmara, essa instituição em si, que recomendo a todo mundo que me frequenta aqui na Hamaca ou lá no Sopão, é uma excelente explicação para essa transformação do Leitor Bagunçado em Organizado: o acervo é ótimo e está repleto desses livros e autores que a gente sempre quis ler mas nunca conseguiu, seja porque o preço na livraria não colaborava ou não havia um exemplar disponível nas prateleiras. Esta, por sinal, é a segunda característica marcante da lista deste ano - o encontro com textos que há muito o Leitor outrora Bagunçado, e agora minimamente Atualizado, desejava encarar. Foi assim que li finalmente as memórias caetanas do "Verdade tropical" (mais pungentes que a melhor composição do baiano, e veja que as melhores canções dele não são pra qualquer um).



Foi nesta mesma pisada que enfim atravessei as mil viagens filosófico-literárias do "Trem noturno para Lisboa". E também foi assim que voltei ao velho bruxo Machado, lido da maneira menos machadiana se a gente pensar em termos de tecnologia: sorvi com prazer cada frase da novela "Casa velha" diretamente na tela de um telefone celular, graças a um aplicativo gratuito e genial, à beira das piscinas de Caldas Novas-GO, enquanto o mundo se revolvia no resto do país com os primeiros jogos da Copa. Além de tantas novelas literárias - que gênero tão rico e tão pouco explorado! - ainda me exercitei no mais puro folhetim, lendo enfim "Meu destino é pecar", que Nelsão Rodrigues publicou sob o nome de Susana Flag. E, como ninguém é de ferro, me diverti com um sorvete doce-amargo muito original, escrito em tiradas de delicioso humor cinza não de todo corrompido pela passagem do tempo, que é, pode acreditar, "A culpa é das estrelas". É um pequeno grande livro, com uma espirituosidade que você não imagina esteja sendo servida às novas e vazias gerações do facebook-instagram-zap-zap. Há que se rezar missas àquele autor-menino por estar fazendo essa caridade à rapaziada. 


E falando em novas gerações, rapaziada e tempos fundamentais, preciso encerrar o relatório do ano com um título que vai bater nas minhas adolescências: "O país do carnaval", enfim relido - um projeto tão antigo quanto a minha desorganizada pessoa - após décadas de lembranças daquele texto que foi não apenas o primeiro Jorge Amado publicado, mas quase certamente também o primeiro romance do criador de Gabriela que eu mesmo li. O livro é antigo, o texto é clássico, e minha leitura dele não era menos evocativa, no que foi um prazer redobrado, talvez por ter sido por muito tempo acalentado, voltar a ele. O Brasil, acredite, ainda está todo ali, apesar de tudo - de 68, de Lula e de tudo o mais: é a velha visão do país que se projeta de fora pra dentro, a preguiça intelectualmente justificada de quem discursa mas afinal de contas não quer ter o trabalho de mudar nada, aliado a determinado e charmoso niilismo instrumental de uma gente que nega qualquer mínimo avanço na tentativa de se descolar pessoalmente da miséria recorrente a que, parece, sempre estaremos submetido - e, comentário meu, por culpa de nós mesmos, que já não dá mais para gente se absolver tanto assim. Mas não fique pra baixo, que no fundo a lista foi pra cima. Basta você, ao passar o dedo pelos títulos, parar um pouquinho no deleite que são os títulos escritos por Ruy Castro, nosso bibliotecário mais pop e refinado, que de tempos em tempos reúne uma porção de artigos sobre cinema, livros e quejandos e nos presenteia com horas de diversão à luz de um abajur, como diz o subtítulo de um dos seus livros incluídos na relação deste ano. Em instantes, a lista.

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...