sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Os livros do ano do Leitor Bagunçado

A Hamaca, que claudica mas não morre (assim como o resistente Sopão), publica com atraso ainda maior do que o regulamentar a lista dos livros que mantiveram ocupado ao longo de todo o ano passado aquela pessoa que muitos de vocês já conhecem de algum tempo chamado Leitor Bagunçado. A novidade - já que a publicação dessa lista é um passatempo que já está virando uma marota tradição - é o fato de o Leitor Bagunçado, vide a lista a sair no post seguinte, estar se tornando cada diz mais... organizado! 

Se 2015 é o ano do apocalipse antecipado na política e na economia - cá entre nós, só concordo plenamente neste prognóstico quando se trata de outra área, a do comportamento, em que nos perdemos completamente numa falsa festa de consumo e ostentação - então não haverá nada de tão extraordinário no fato de o Leitor Bagunçado estar se transformando, em processo lento e gradual porém inegável, em Leitor Organizado. Quais as consequencias dessa mudança? Não se sabe, tanto quanto se ignora onde vai dar este 2015 de tamanho mau presságio. Como diria um personagem daqueles que figuram entre os preferidos do Leitor Bagunçado - ou melhor, a caminho de se tornar Organizado - só posso dizer que é assim que tem sido, à moda Chicó que muito me orgulha. 

Aos fatos: por que se diz que o Leitor Bagunçado começa a dar vez a este Leitor Organizado, como se uma nova era estivesse se imiscuindo entre as chapas do tempo de maneira a sutilmente alterar para melhor - não conte pra ninguém, mas ao contrário do que vige entre nós, brasileiros, sou muito fã de tudo que é organizado - o panorama, se não do país e do mundo, das distraídas leituras que preenchem o tempo e a cabeça especialmente quando a realidade lá fora não é muito auspiciosa? Diz-se, retomo, que o Leitor Bagunçado está a se tornar Leitor Organizado pelo mero fato de que na lista do que foi lido em 2014 constatar-se certa regularidade de autores, ligeira fidelidade em gêneros, aparente coerência em escolhas. 

Por exemplo: em 2014 o Leitor Bagunçado leu, praticamente em sequencia, quatro - eu disse quatro! - belas novelas de Carlos Heitor Cony. Alguém capaz de tamanha disciplina ainda merece ser chamado de Leitor Bagunçado? Chequem na lista que vem daqui a pouco: "Antes, o Verão", "Informação ao Crucificado", "Pessah: a travessia" e "O piano e a orquestra" (este, uma releitura estimulada pela descoberta dos títulos anteriores). Descobri que Cony é muito melhor romancista - e prefiro dizer "novelista" porque quanto mais enxutas melhores são suas narrativas sobre certa e pretérita classe média da zona sul carioca - do que comentarista de página 3 dos nossos pobres jornais de cada dia. Foi uma bela descoberta na qual o agora Leitor Organizado pretende se aprofundar: o próximo da lista é "Pilatos", o célebre e várias vezes rejeitado romance fim-de-tudo de Cony, que também encontrei, como os demais, na biblioteca da Câmara dos Deputados, onde labuto. 

Falando da biblioteca da Câmara, essa instituição em si, que recomendo a todo mundo que me frequenta aqui na Hamaca ou lá no Sopão, é uma excelente explicação para essa transformação do Leitor Bagunçado em Organizado: o acervo é ótimo e está repleto desses livros e autores que a gente sempre quis ler mas nunca conseguiu, seja porque o preço na livraria não colaborava ou não havia um exemplar disponível nas prateleiras. Esta, por sinal, é a segunda característica marcante da lista deste ano - o encontro com textos que há muito o Leitor outrora Bagunçado, e agora minimamente Atualizado, desejava encarar. Foi assim que li finalmente as memórias caetanas do "Verdade tropical" (mais pungentes que a melhor composição do baiano, e veja que as melhores canções dele não são pra qualquer um).



Foi nesta mesma pisada que enfim atravessei as mil viagens filosófico-literárias do "Trem noturno para Lisboa". E também foi assim que voltei ao velho bruxo Machado, lido da maneira menos machadiana se a gente pensar em termos de tecnologia: sorvi com prazer cada frase da novela "Casa velha" diretamente na tela de um telefone celular, graças a um aplicativo gratuito e genial, à beira das piscinas de Caldas Novas-GO, enquanto o mundo se revolvia no resto do país com os primeiros jogos da Copa. Além de tantas novelas literárias - que gênero tão rico e tão pouco explorado! - ainda me exercitei no mais puro folhetim, lendo enfim "Meu destino é pecar", que Nelsão Rodrigues publicou sob o nome de Susana Flag. E, como ninguém é de ferro, me diverti com um sorvete doce-amargo muito original, escrito em tiradas de delicioso humor cinza não de todo corrompido pela passagem do tempo, que é, pode acreditar, "A culpa é das estrelas". É um pequeno grande livro, com uma espirituosidade que você não imagina esteja sendo servida às novas e vazias gerações do facebook-instagram-zap-zap. Há que se rezar missas àquele autor-menino por estar fazendo essa caridade à rapaziada. 


E falando em novas gerações, rapaziada e tempos fundamentais, preciso encerrar o relatório do ano com um título que vai bater nas minhas adolescências: "O país do carnaval", enfim relido - um projeto tão antigo quanto a minha desorganizada pessoa - após décadas de lembranças daquele texto que foi não apenas o primeiro Jorge Amado publicado, mas quase certamente também o primeiro romance do criador de Gabriela que eu mesmo li. O livro é antigo, o texto é clássico, e minha leitura dele não era menos evocativa, no que foi um prazer redobrado, talvez por ter sido por muito tempo acalentado, voltar a ele. O Brasil, acredite, ainda está todo ali, apesar de tudo - de 68, de Lula e de tudo o mais: é a velha visão do país que se projeta de fora pra dentro, a preguiça intelectualmente justificada de quem discursa mas afinal de contas não quer ter o trabalho de mudar nada, aliado a determinado e charmoso niilismo instrumental de uma gente que nega qualquer mínimo avanço na tentativa de se descolar pessoalmente da miséria recorrente a que, parece, sempre estaremos submetido - e, comentário meu, por culpa de nós mesmos, que já não dá mais para gente se absolver tanto assim. Mas não fique pra baixo, que no fundo a lista foi pra cima. Basta você, ao passar o dedo pelos títulos, parar um pouquinho no deleite que são os títulos escritos por Ruy Castro, nosso bibliotecário mais pop e refinado, que de tempos em tempos reúne uma porção de artigos sobre cinema, livros e quejandos e nos presenteia com horas de diversão à luz de um abajur, como diz o subtítulo de um dos seus livros incluídos na relação deste ano. Em instantes, a lista.

Um comentário:

  1. Minha primeira leitura de Jorge. Depois, não parei mais. Ele me havia cativado de cara. Quando li "Capitães de Areia", a história fascinante dos meninos de rua sabia que Jorge seria eterno pra mim.
    Parabéns pelo excelente Blogue.

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