Um clássico esquecido e folhetinesco ajuda a explicar, a partir da Salvador de 1607, o país do autoengano de 2015
Começou com uma piscadela casual para um desses livros compactados em arquivos gratuitos no leitor digital. "As Minas de Prata" tinha esse título atraente, novelesco, algo histórico e, cimentado pela autoria de clássico-de-banco-escolar (pelo menos, antigamente - ou seja, no meu tempo) José de Alencar, prometia uma leitura ligeira e nostálgica. Qual nada: depois de ler algumas páginas no Kobo, descobri-me alencariamente atolado em movediças areias de literaturas pregressas.
O enredo - este é o tipo de livro que tem bem isso, um enredo - havia se grudado à minha mente tal como as trepadeiras das floras daquele colonial Brasil de 1607, nas cercanias da cidade de São Salvador, a bahia com h do romantismo histórico e épico que marcava o período. Não havia mais jeito de escapar. A única saída era fugir dos futurísticos erros de código do kobo que transtornavam a leitura, para além daquele português castiço que, como uma selva misteriosa, em muitos momentos também se revela não menos que bela. A ideia era procurar um exemplar de papel e capa dura, bem 1.0, para prosseguir no desfolhar das desventuras de um herdeiro em busca das tais minas de prata descobertas pelo pai que a vida tragou para os matagais da morte.
Sem mais circunvoluções, descobri que "As Minas de Prata", de José de Alencar, é um livro e tanto: uma saga da colônia ao tempo em que todos - absolutamente todos - queriam enriquecer. Isso lhe diz alguma coisa sobre o presente independente daquela ex-colônia? Nem pra me fazer esquecer a sombra sinistra de figuras contemporâneas como um certo Eduardo Cunha o livro me serviu. Pois lá não está um jesuíta de conveniência, por sinal um dos principais personagens, que usa o púlpito e a igreja como trampolim para enfeitiçar o povaréu sem votos (religiosos, entendam bem), manipular os irmãos da ordem e alcançar o butim aqui representado pelas tais minas?
Do novelão de Alencar, entre trechos de capa-e-espada que o acomodam bem no clima literário da época, emerge um panorama de país em formação que não fica nadinha a dever ao projeto, ops!, que dele resultou. Aí está um livro que poderia muito bem ter sido distribuído nesse domingo 16 entre os manifestantes mil - ou nem tanto - atrapalhados na confusão entre desejo de consumo, inconsciência política e frustração pura e simples mal direcionada. Como eles iriam se identificar, caso se dispusessem a ler.
Mas, ler, ah, amigão - ler são outros quinhentos anos. E sobretudo no caso de "As Minas de Prata", porque se trata de muito mais do que quinhentas intransponíveis páginas para quem, na Esplanada dos Ministérios, é incapaz de exercer o protesto político além do sol das 13h. E aqui preciso retomar o fio do início do post: ao buscar um exemplar analógico para prosseguir no que se convertera em difícil digital leitura (por causa dos erros de formato comuns quando se abre livros "grátis" em leitores digitais) descobri, perplexo, na Biblioteca da Câmara dos Deputados, que "As Minas de Prata" não é apenas um livro: são dois.
Dois vitaminados volumes com mais de 500 páginas cada um. Pense numa novela. Aliás, pense mesmo: enquanto lia, descobri que, de tão folhetinesca, a história dessas minas de prata escondidas em algum lugar dos vastos sertões coloniais brasileiros fora tema de adaptação feita pra a tevê a carvão, com - óia - Regina Duarte, a manifestantezinha do Brasil, no papel da heroína. Coisas da TV Excelsior, acho - por sinal, emissora que outro projeto de poder autoritário, o dos militares, reduziu a ruínas; mas essas são outras aventuras.
"As Minas de Prata", enfim, disponível para Kobo em transcrição sofrível mas encontrável em bibliotecas públicas em dois volumes analogicamente intactos, é um desses grandes livros esquecidos, mas que poderiam estar em qualquer lista dos títulos literários que ajudam a explicar o país do autoengano permanente, o Brasil de 2015.
conexões entre amigos, livros, filmes, discos, memórias, férias, viagens, natal e brasília
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
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