segunda-feira, 26 de abril de 2010

Para tropeçar na grande arte


Vocês me perdoem mas preciso dizer uma obviedade daquelas: é incrível a capacidade que o ser humano tem de fazer arte, aquela com A maiúsculo, acima de qualquer questionamento, que quando lhe atinge é como um direto no estômago que faz o sujeito urrar de espanto e deslumbramento inesperado. O motor desse comentário banal é uma cena de minissérie de tevê a que assisti estes dias. Estou vendo, com o atraso regulamentar, a caixa de DVDs com a minissérie "Hoje é dia de Maria", dirigida com o maneirismo de sempre por Luiz Fernando Carvalho. O diretor, como faz muito tevê, é bem conhecido em seu estilo pródigo de imaginação, barroquismos e transcendências - no que é muito corajoso, porque a tal linguagem de televisão constuma rejeitar tais rendilhados. No cinema, o homem fez o chão sacudir com sua recriação da "Lavoura Arcaica" - e tudo o mais que eu disser sobre ele, inclusive a invenção daquela Fernanda Montenegro de "Jacutinga" na novela "Renascer", será desnecessário.

O necessário agora é dizer de uma cena - apenas uma e "escassa" cena, como gostava de dizer Nelson Rodrigues - suficiente para colocar a minissérie num pedestal de onde deveríamos todos reverenciá-la, apesar do caráter meio sombrio que lhe percorre os episódios, como nota Rejane quando passa pela sala enquanto eu me encontro submerso nas metáforas líricas de Luiz Fernando. A cena mostra o esplendor de representação de um único entre os vastos grandes atores da minissérie: é Osmar Prado, no momento em que representa tanto o pai de Maria, um completo despossuído de matéria e alma, alimentado por migalhas de esperança ressecada, quanto a figura de sua própria morte. Osmar Prado é os dois: em um, é o resto de umidade do que sobrou do veio de vida que habitou uma pessoa agora à morte; em outro, é a própria morte, de cara limpa, palavras claras, expressão grave e empatia tão inevitável quanto assustadora, a anunciar ao outro que a hora chegou. É um assombro a cena - e não é nada de mais: apenas um ator dando vida não apenas a dois personagens, mas a uma realidade da qual se diz de boca cheia que dela ninguém escapa, como se fosse apenas isso. Osmar Prado, o ator exposto em nervos de anatomia humana, mostra que não é só isso - e o faz em uma mera cena de seriado de tevê. A morte ganha um outro estatuto nas mãos do profissional da arte.

Assistindo à cena, pensei na capacidade de suspensão que a arte - no caso, o desempenho de um ator, com o auxílio da luz de um iluminador e a condução de um diretor, movidos pelo texto de um autor - pode proporcionar. Por um momento que dura dez ou quinze minutos, o espectador se distancia dele mesmo, coloca-se aquém e além da realidade comezinha da vida, instala-se em algum lugar acima da mente e da alma de onde pode, extasiado, refletir sobre o que é, onde está e por que. Vendo Osmar Prado representar o morto e a morte, lembrei de uma antiga peça em monólogo feita por uma atriz portuguesa no tão amado TAM, o Teatro Alberto Maranhão, em Natal, em ano distante. Lá, no fundo da sala teatral envolvida toda em sombras, havia o vestígio de um barco que fazia da superfície do palco a linha d'água surreal de algum rio. E no corpo dessa canoa cenográfica, iluminada apenas por uma vela de afogado, estava a presença da atriz, bela e imensa em sua expressão a se projetar até a derradeira fila, com a força que a representação confere ao pobre ser humano. Titina estava com a gente e disse, anos depois, que aquela cena e aquela peça a fizeram se decidir por perseguir a profissão de ser atriz.

Pois é: anos depois, Titina e Quitéria, nas brumas urbanas de "Pobres de Marré" traziam de volta, sob o facho de postes cenográficos, aquela mesmíssima atmosfera. O lume desta magia que a arte consegue construir, de uma cena em que o mínimo movimento, no escuro do palco, retira alguma coisa muito grande do lugar, remove em milímetros incalculáveis as estruturas de nossa percepção sobre o que somos e pra que diabos estamos aqui, nesta cadeira numerada ou diante deste computador. Uma sensação que nos assalta quando diante de outras formas de arte, algumas vezes juntando várias delas no mesmo momento revelador. Como numa cena do filme "Era uma vez na América", do italiano Sergio Leone, em que uma menina com rosto de anjo sapeca dança em roupas de bailarina entre sacos e caixas de um armazém de secos e molhados, enquanto é observada por um menino que lhe cobiça o corpo e a alma.

Grande arte esta, que está por aí e, de vez em quando, para nosso deleite e nossa glória, surge para nos fazer tropeçar no banal da vida e lembrar que nem tudo são contas, metas e compromissos.

Um comentário:

  1. Tião que texto maravilhoso. Vc é artista disso, de escrever, se expressar dessa forma e nos presentear com palavras e imagens que nos faz criar.
    Sobre essa peça que assistimos, o ano foi 1992, era março e foi minha primeira ida ao teatro. A peça era O Pranto de Maria Parda e a atriz era Maria do Céu Guerra. Nunca esqueci desse dia, dessa atriz e dessa peça e foi lá minha maior epifania. Um dia mágico que guardo comigo. Uma revelação. E agradeço a vc e a Nani por me levarem ao teatro naquele dia, por me presentearem com o meu futuro.
    Quando fui em Portugal procurei o grupo dela, A Barraca, mas eles estavam de férias.
    Saudade da família.

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