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sexta-feira, 23 de abril de 2010
Tocar tudo
Roberto Carlos não veste marrom, o personagem de Jack Nicholson no filme "Melhor é Impossível" não pisa entre as pedras da calçada e o milionário e cineasta Howard Hughes só abria porta de banheiro usando um lenço para não se contaminar com as bactérias, como relembra Martin Scorsese em "O Aviador". Estes são casos extremos, mas de uma maneira ou de outra todos temos nossos pequenos "tocs" secretos - os tão falados "transtornos obsessivo-compulsivos" que, levados às últimas consequências, tornam a vida um inferno. Eu sou humano e tenho vários, mas o que me interessa aqui é apenas um deles: minha mania de ouvir discos da primeira à última faixa. Como é bom - e como é difícil abrir mão dessa jornada sonora completa.
Como o meu caso não é clínico - ainda bem -, eu naturalmente interrompo a audição do meu Zé Ramalho preferido quando chega a hora de um compromisso, ou quando as crianças me chamam, ou quando Rejane convoca. Sem maiores problemas, afinal eu não sou Roberto Carlos nem com toc nem sem. Mas que o bom mesmo é ouvir o disco inteiro, faixa após faixa, sem nem sequer uma pausinha pro xixi, ah, disso não há dúvidas. Por isso mesmo, e sem querer soar ultrapassado, minha cisma com esses novos tempos em que a música virou um peixe que se come em postas, à venda na internet, ou disponível de graça - mas fragmentada como um cadáver de Chico Picadinho - no E-mule, ou ainda compactada (depois de desfiada em faixas independentes) no CD de MP3.
Reafirmo: não sou Roberto Carlos com toc nem sem, por isso tenho sim CDs de MP3 daqueles que misturam as já bagunçadas coletêneas numa única mídia infinita, também baixo minhas músicas (já baixei mais, a amor passou e o computador também já foi melhor), mas o fato concreto é que tudo isso é uma adaptação difícil. Porque do que continuo gostando mesmo, é do velho (!) CD comercial, normal, da gravadora, que se compra na loja, tanto quanto se fazia com o velho long play do tempo da Modinha. Gosto da coerência do projeto, da harmonia do conjunto, da intercomunicação interna das faixas, de ouvir em música organizada a idéia que o cantor e o compositor depositaram naquilo tudo. Em suma, gosto de música em formato superado, embora admita os novos - mas é como se os novos fossem imperfeitos perto da experiência acumulada dos velhos. E são mesmo, ora!
Essa conversa toda está aqui porque acabo de ver no G1, aquele site de notícias com que a Globo tenta ocupar mais um espaço midiático nativo, uma notícia animadora e uma idéia divertida construída sobre ela. Já-já coloco o link pra você conferir in loco, caso também tenha essa minha mania de ouvir discos inteiros e não servidos em pedacinhos como bolo de aniversário em festa da repartição. A notícia é de que o grupo Pink Floyd foi à justiça contra a venda, pela multinacional da música EMI, de faixas separadas do célebre album "The Dark Side of the Moon". Todo mundo sabe que a venda esfacelada de faixas deste - ou de qualquer outro disco do Pink Floyd - é uma tremenda interferência na concepção da própria música do grupo. Só pra efeito de compração, imagine uma pessoa que passa horas ouvindo faixas soltas de vários discos do Pink Floyd mesmo: já é um negócio indigesto como comer uma pizza grande em que cada um dos oito pedaços é de um sabor diferente. Agora, imagine misturar faixas avulsas do Pink Floyd com coisas de outros músicos que não têm muita afinidade com o som da banda.
Até vale, como uma coletânea eventual - ou num momento relaxado em que a música é apenas parte do que se passa, como numa festa, por exemplo. Mas, no geral, é inegável que a venda de discos em pedaços vai afastar o ouvinte da essência da música daquela banda específica. Não chega nem ao nível do "compacto" de antigamente que, ao menos, podia oferecer uma amostra do que era o LP completo, já que trazia embutido um mínimo de conceito - a não ser que contivesse música imprestável mesmo, mas o que não presta independe de mídia e será ruim em qualquer formado, esse já é outro papo. Voltando ao caso do PF, a notícia no G1 é de que a banda venceu a causa. Felizmente. E aí, como nada se perde no reino da informação de entretenimento do mundo da internet, o G1 aproveita para pedir a um grupo de artistas uma lista com álbuns que eles consideram que devam ser ouvidos assim, na íntegra, faixa após faixa, sem essa de venda avulsa como pizza fatiada.
Leia aqui a notícia e veja as listas. Na próxima postagem, mais um pouquinho sobre o assunto. Aguardem.
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