sexta-feira, 23 de abril de 2010

Tocar tudo (2)


Há momentos em que uma ilha de edição pode ser um negócio maçante como contar carneirinhos pra combater a insônia. Quando o editor de imagens começa a "ajustar" um pedacinho de áudio de uma reportagem em que estamos trabalhando, e a ilha digital começa a repetir um mesmo trecho, como se o equipamento estivesse com soluço, é uma tortura. Por isso, sempre que entro numa ilha levo comigo um livro, um jornal, uma revista - alguma distração para ocupar a mente enquanto o editor de imagens batuca nos teclados ou, como acontece agora, com a digitalização, pilota o mouse. Esta semana, trabalhando incansavelmente num video sobre a viúva de Israel Pinheiro, o cara que administrou no canteiro de obras a construção de Brasília (sim, com a comemoração dos 50 anos da cidade, preparou-se muito material sobre o assunto), passei de novo por isso.

Cansado de ler este best-seller sobre a história da humanidade em que estou empacado há semanas (o livro é bom, estou empacado por outros motivos), resolvi ligar o som do celular, usando os fones de ouvido como refúgio contra um daqueles indefectíveis "ajustes de áudio". O som vazou um pouquinho, era Caetano cantando "Trilhos Urbanos" naquele disquinho acústico do início dos anos 90 (aquele onde ele canta, divinamente, "Get Out of Town" e cuja capa ilustra a postagem) e Wagner, o editor de imagens, lascou a pergunta: - Gosta de MPB, Tião? Murmurei o meu "yes, man" habitual nessas horas, pensando, com os pitocos do meu celular cantante, o quanto esta pergunta, simples, curta e direta, revela sobre a maneira como a garotada consome música no mundo atual.

Na postagem anterior, falava da minha mania de ouvir os discos inteiros, a pretexto de comentar a vitória do grupo Pink Floyd sobre a EMI, que foi impedida pela justiça de fatiar o célebre LP "The Dark Side of the Moon". A pergunta de Wagner tem tudo a ver com isso. É a indagação típica de quem se acostumou a classificar em gêneros estanques - mas comercialmente eficientes, segundo supõem os gerentes de marketing - aquela coisa maior, anterior ao produto disco ou à faixa de MP3, que é a música. A música boa e ponto final. Ao esfacelar o comércio musical em faixas estanques, a indústria da área (ou o que restou dela, o que só mostra que a danada continua errando), matou não só o conceito consagrado de álbum, mas também reuniu os cadáveres em um negócio semimorto chamado "gênero". Já reparou na quantidade de discos "ao vivo" que estão à venda na rede de lojas Americanas?

Por causa disso, parece que hoje em dia ninguém mais gosta de Caetano Veloso - gosta de MPB. Ninguém mais ouve Michael Jackson - escuta flash back. Ninguém mais curte a Legião Urbana - consome "rock nacional". E por aí vai, numa norma que ignora o lado rock de Caetano, ou o lado, vá-lá, MPB de Cássia Eller, ou a contribuição de Michael Jackson para a formatação do pop atual (aqui, sim, citado, visto e ouvido como um gênero pelo que contém de particular em relação ao jazz, por exemplo). Enfim, a classificação genérica e didática até que existe e se justifica, mas o nível de categoria redutor em que ela foi convertida pelo mercado do disco, o pobre e burro mercado do disco atual, é atentatório à dignidade da música como forma mínima de arte.

Quer ver uma coisa? Naquela própria enquete feita pelo G1 com artistas, em que se pede que eles indiquem álbuns que devem ser ouvidos sempre na íntegra, há um sinal dessa compartimentação do mercado musical. Repare que a "roqueira" Pitty sugere somente discos dessa vertente, enquanto Bruno Medina, um Hermano mais próximo à música brasileira clássica, sugere somente álbuns "de MPB". Como eu não sou ninguém e, sendo assim, não corro o menor risco de ser classificado e embutido nos escaninhos de algum gênero musical, vou preparar minha própria lista de discos que devem ser ouvidos na íntegra, sem discriminar estilos. Só pra protestar, mesmo que ninguém note. De maneira que vem aí a maior mistureba. Aguardem a lista na próxima postagem.

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