terça-feira, 27 de abril de 2010

Caicó arcaico


Hoje, coisa de uma e tanto da tarde, trafegando na avenida Hélio Prates, em Taguatinga, Distrito Federal, lembrei-me de Caicó. É que, junto com o vento na janela do carro, veio um cheiro forte e saboroso de torrefação de café, a madeleine particular que guardo dos tempos em que, menino, ia a Caicó na carroceria das caminhonetes que meu pai fretava para levar frutas e verduras que vendia numa das feiras da cidade.

Junto com o cheiro de café torrado, inesperado e embriagador, veio a memória de todo um tempo desenhado pelos meus olhos de criança. É um Caicó arcaico como diz a música de Chico César. Um Caicó que aos meus olhos pequenos parecia muito maior, a metrópole possível para minhas pernas curtas que não alcançavam mais do que os limites rodoviários do velho Seridó. Mas que belo Caicó era aquele.

O Caicó da visão marginal da linha d'água do Itans na beira da estrada. O Caicó de carnavais barrocos, com caminhões tomados por foliões em blocos mil na avenida Coronel Martiniano. O Caicó da Rádio Rural, de uma distante e deslumbrante sessão de cinema que exibiu em tela gigantesca e em cores desenhos da Pantera Cor de Rosa. O Caicó das óticas onde experimentei meus primeiros óculos. O Caicó para onde minha mãe ia de tempos em tempos, provocando grandes sofrimentos na minha pequena pessoa, para fazer suas cirurgias. O Caicó cujas estradas, à noite, evocavam um pelotão rebelde que a qualquer momento poderia reaparecer ao luar misterioso. O Caicó de crimes espetaculares, de tiros premeditados que tiravam a vida de algum doutor à saída de um baile de carnaval. Caicó de papelarias com artigos variados que meus olhos cobiçavam, e onde se podia comprar, dinheiro havendo, mais de um livro da série Vagalume. Caicó do meu tio ex-combatente e suas noites diante da tevê que exibia em branco e preto velhos filmes de guerra.

Tudo isso tomou conta do ar já meio rarefeito de Taguatinga nesta época do ano quando o cheiro de café torrado entrou festejando pelas minhas narinas. Um belo presente proustiano que ganhei no meio de um compromisso do dia-a-dia, sem preço calculável, como diz o anúncio daquele cartão de crédito.

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