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terça-feira, 19 de janeiro de 2010
19 dias, 2 livros, muitos filmes
Pensando bem, o que são 19 dias num calendário que se compõe de 365 manhãs, tardes e noites, espraiado por 12 meses, tingido por estação seca e estação chuvosa, adornado por festejos como o São João, a Páscoa e o carnaval, demarcado, no caso específico deste 2010, por uma eleição presidencial e uma copa do mundo de futebol? Nada, nadinha, parece. Mas é bom poder dizer que, mesmo com as férias da garotada e a procura incansável por atividades recreativas no turno matutino, o que inclui visitas a parques variados em dias alternados, este início de 2010 já me trouxe uns bons dividendos sapienciais depositados no bisaco das ilustrações que a gente proporciona à gente mesmo. Pois bem, são 19 dias e 44 anos redondos exatamente hoje, dois livros lidos, pouco mais de meia dúzia de filmes - uns vistos, outros revistos; uns em casa e dois (dois! viva!) no cinema -, parques revisitados e até um dia na cachoeira de Itiquira, em Formosa, Góiás. Enfim, um panorama renovado tanto quanto possível neste ano que começa salpicado pela dor de tantas desgraças. Não é pouco, e pode ser muito mais do que o bastante. Vamos a uma síntese deste almanaque inaugural.
Começando pelos livros, venci a flora de artigos que compõe a segunda parte daquele "Cinema Brasileiro - Propostas para uma história", em que Jean-Claude Bernardet nos contraria inteligentemente com uma visão que eu, ignorante de boa cepa, ainda não havia encarado sobre o cinema feito no Brasil. A postagem anterior desta Hamaca já anunciava (leia aqui) o objeto do livro e a forma como ele lembra que o domínio estrangeiro, e sobretudo ele, foi o grande empecilho à afirmação de uma mui desejada indústria do cinema no Brasil. É isso o que consta na reedição do ensaio original de Bernardet, mas os artigos que foram adicionado a esta nova edição de bolso reforçam cada um dos argumentos que o estudioso do cinema vinha martelando na primeira parte.
É saboroso ler Jean-Claude mostrando como um filme como "Terra em Transe" foi, incoscientemente ou não, mal compreendido pela classe média intelectual e esclarecida do Brasil urbano dos anos 60, quando dizia, esta dita classe ilustrada, que o filme de Glauber Rocha era muito bom mas, pena, inacessível para as massas, o povo, o público ou outra palavra similar (aliás, Jean-Claude faz questão de distinguir "povo" de "público", o que é outro achado contido no livro). O crítico de cinema lembra, a tempo, que o filme se dirigia exatamente a este público esclarecido de classe média, público elitizado, ideologizado, mas cego à restrita influência que exercia sobre o conjunto dos brasileiros, o povo propriamente dito. É como se Glauber atirasse uma pedra à esquerda sabidinha da época e essa esquerda de carpete olhasse para o lado, fingindo que a pedrada não era para ela, mas para o povo que infelizmente não tinha refinamento suficiente para entendê-lo. (a propósito: veja trechos do filme na barra de vídeo, na coluna à direita)
O segundo livro, lido em pouco mais de 24 horas no sossego de uma rede na varanda, funcionou como um ventilador portátil no calorão que de repente se abateu sobre a península onde vive este leitor preguiçoso. Depois de um giro pelos shoppings da vida, de oferecer às crianças o mel dos parques de diversões encaixotados entre lojas, nada como voltar para casa e ver um pouco da noite através das franjas da rede e, assim como quem não quer nada, pegar aquele livro que acenou pra gente na prateleira da livraria do Midway, instantâneo de férias natalenses que se guarda com carinho pra ler no decorrer do ano. O livro é uma reedição, pelo Sebo Vermelho, do "Guia da Cidade do Natal", de Manoel Onofre Jr. É verdade que a reedição comete uma série de pedadilhos que poderiam ter sido perfeitamente evitados. Por exemplo: atualizar algumas coisas, como a citação da Ponte Newton Navarro, e não atualizar outras, como a expressão "cocotas" e quetais em referência aos passeios na Praia dos Artistas. Parece bobagem mas só à primeira leitura, já que, ao fim e ao cabo, essa atualização meia-boca confunde o turista a quem a reedição pretende toscamente se dirigir, numa reformatação que parece ter sido feita às pressas. Algo, aliás, totalmente desnecessário - seria muito melhor o livro assumir-se como um "guia" poético da cidade escrito no tempo mesmo em que foi feito, 1979 ao que se pode inferir (porque, vacilo dos vacilos, nem a data original da publicação a reedição informa).
Mas o fato é que, no calorinho que vai chegando, na noite calma do Lago Norte, na rede da varanda e depois do fervilhado sonoro que é a algazarra dos meninos no passeio anterior à leitura, a viagem por esse guia é um refresco de caju. Uma bela rememoração da cidade, uma palestra histórica tão superficial quanto arejada sobre o passado da cidade de Jerônimo de Albuquerque, um passeio virtual pela terra onde morreu o revoltoso André de Albuquerque - e até uma visita curiosa aos domínios de seus personagens mais delirantes, com Severina, a imperatriz do Brasil.
No DVD, um filme a que há tempos queria assistir. É aquele "Frost/Nixon" que deveria ser um manual de procedimentos sobre a verdadeira opinião pública que todo político inteligente deveria carregar debaixo do braço, para consulta sempre que possível. "Frost/Nixon" merece uma postagem à parte no "Sopão", mas teria que constar aqui como o melhor deste ano que se inicia, com o atraso regulamentar que vai se tornando uma marca deste espectador. Fora ele, ainda consegui ver neste espaço de 19 dias os seguintes filmes - uns novos, outros, em releitura de matar saudades:
"Barravento" (Glauber Rocha),
"Esse milhão é meu" (Carlos Manga),
"Paris, Texas" (Wim Wenders),
"Cidade de Deus" (Fernando Meirelles e Katia Lund)
"Impacto Fulminante" (Clint Eastwood)
"O homem que copiava" (Jorge Furtado)
"Antes do Amanhecer" (Richard Linklater)
"Lisbela e o Prisioneiro" (Guel Arraes)
"P.S, Eu te amo" (Richard LaGravanese)
"Separações" (Domingos de Oliveira)
No cinema, além de "Lula, o filho do Brasil", produto da marca Barretão digirido pelo filho Fábio, que ocupou a primeira tarde do ano e sobre o qual já não há mais nem o que dizer (se quiser saber mais, clique aqui), ainda tive o privilégio de uma sessão noturna, num domingão, no cinema do Deck Norte, a um passo de casa, onde vi "Amantes", oportunidade para descobrir James Grey, diretor cujos filmes ainda não haviam passado pela minha retina. E uma novidade é sempre bom (resta agora, encarar os outros filmes do cara, como aquele "Os donos da noite" à venda nas Americanas).
E pra fechar a lista, os parques urbanos, para onde se leva as crianças, onde se comete uma caminhada e se pratica alguma leitura enquanto Cecília e Bernardo se penduram onde não deviam mas também de onde não se consegue bem tirar uma criança. Com a diligente colaboração de Ivone, a nova general que nos ajuda a tomar conta dos pimpolhos, sempre é possível uma digressão à sombra das árvores fartas do parque Olhos d'Água, no final da Asa Norte, ou do Parque da Cidade, na área central, ou até na cachoeira de Itiquira, destino desse domingo passado, paisagem para um dia inteiro, em passeio que traz de volta, no leito da estrada, a visão de Pirenópolis, Goiás Velho e Caldas Novas, nossos refúgios quando a rotina do trabalho faz esquecer que o ano já vai longe. O que, por enquanto, ainda demora um pouco, no caminhar destes primeiros e bons 19 dias.
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