sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um ano de casa nova (1)


No último dia 2 de novembro, completou-se um ano da nossa mudança para o que ainda posso chamar de "casa nova". Pois é como se fosse ontem, porque, descubro diariamente mesmo decorridos doze meses da mudança, todo dia é como se estivesse chegando agora carregado de caixas de livros, pilhas de CDs, apetrechos eletro-visual-sonoros e demais itens que compõem uma casa - e que são, os tais demais, a gente sabe, completamente supérfluos, como geladeira, fogão e mesa de almoçar e jantar. Pois é, como dizia, como se agorinha mesmo o caminhão de mudança tivesse dado ré e batido em retirada. Como se os gatos ainda estivessem farejando o novo ambiente - e eles se cansam de farejar? Como se a noite de hoje - e digo isso pouquinho antes de ir dormir - ainda fosse a primeira que vou passar no novo endereço.

Que bom, você deve estar pensando. É mesmo - mas temo quebrar um pouco sua expectativa. Essa sensação novinha em folha de que não se passaram 365 dias desde que aqui chegamos não se deve uma saudável disposição de minha parte de fazer do meu dia na casa "nova" um eterno recomeçar, como dizem títulos de filmes melosos ou de boleros tristes. O que acontece, de verdade - e temo que isso também lhe deixe aflito, meu caro e solitário leitor, que isso seja um dos inúmeros males de nossa época - é o fato de que, no somar e no subtrair das horas, como diria um tango suicida, percebo que passo muito menos tempo dentro desta dita casa "nova" do que pretendiam meus iludidos planos de quando para aqui me mudei. Pessoal, na boa: a gente vive ou não vive na rua? Me repondam. Não digo "na rua" no sentido lúdico-democrático, que é aquele "estar na rua" participando da vida coletiva, das comemorações e dos encontros com os quais se faz a vida em comunidade. A rua em questão é outra, bem menos convidativa - é o cenário dos compromissos formais, do trabalho atrasado, do trânsito ansioso. Pois bem: a gente vive é na rua. E a casa "nova", com sua demanda adicional (tarefas como consertos, compras inerentes à nova forma de moradia, distância maior, acesso mais difícil) vai fazendo com que a gente, pouco a pouco, a habite cada vez menos.

Na postagem anterior, falei aqui dos caprichos dos livros clássicos. Pois também vivo às voltas com os caprichos da casa "nova" (e um deles, certamente, são essas aspas que me fustigam o texto). Em resumo: no apartamento onde morava, com demandas a menos, parecia que eu parava mais quieto sob o teto menor, mas menos exigente. Aqui, na casa "nova" (não tem jeito, não consigo me livrar das aspas), tenho uma moradia que me acomoda melhor, com uma varanda generosa, um oitão que é dez pra se ler de manhã, uma garagem que não me obriga a ter perícia de Fórmula Um para estacionar o carro, um quintal que refresca pelo menos a visão, mas nem sempre posso aproveitar disso com a mesma frequencia e intensidade que a antiga moradia, sem me fornecer nenhum desses luxos, entretando me proporcionava.

Estou chorando em vão? Talvez, mas sobretudo estou constatando uma realidade que não é só minha: puxa vida - ou "que lástima", como diria o emburrado Dr. Smith perdido na imensidão do espaço - a gente vive mesmo é na rua. Ainda assim, na base da vã teimosia, posso encerrar esse balanço de um ano de casa "nova" pelo menos com uma listinha assim cabisbaixa dos meus recantos preferidos, esses que resistem bravamente aos compromissos e me seguram em casa de vez em quando: a rede da garagem, onde já passei boas horas em companhia de seu Kafka, seu Salinger e outros velhotes mais; a sombra da ameixeira esquisita (ninguém identifica de pronto a espécie, e um ano depois também há quem diga que é um pé de nêspera) no quintal; e o já referido mini-oitão onde passei vastas manhãs andando pelos buracos colombianos com o então jovem e promissor Gabriel García Marquez décadas antes da fama. Parece muito? É impressão. A casa é boa, gente, e o potencial ocioso que existe na relação custo-benefício entre eu, morador, e ela, meu abrigo, tem espaço para muito mais. Quem sabe no dia em que eu finalmente conseguir expulsar aquelas tais aspas, e a casa deixe de ser enfim algo novo, como um vinho que precisa ser envelhecido muito além de uma dezena de meses, a gente possa então coabitar um pouco mais?

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