segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O leitor viciado


Ok: Dan Brown. Uma hora esse assunto desagradável haveria de chegar. Pois que seja agora, à queima-roupa, como um tiro disparado por um sofisticadíssimo gangster de romance noir. Um balaço em forma de pergunta, rápida e intolerante: por que ler Dan Brown? Como é possível a quem já fez escalou as alturas de Machado de Assis e Phillip Roth se abaixar para beber da água fétida que corre na sarjeta dos mais vendidos? Qual é a atração dessa futilidade paraliterária? O que leva o ser humano a ceder ao chamado da manada e se dar ao trabalho de ler esse subproduto para iletrados? O que merece a mente ordinária que admite não apenas ler, mas até sentir alguma satisfação no fruir dos parágrafos vulgares desses livros vendidos que nem sabão em pó nas mais vulgares lojas de departamentos?

Vou tentar manter a metáfora. Quem sabe a metáfora, na falta de um colete à prova de balas, me protege dos xerifes das letras. Assim, brandindo a metáfora como quem manipula um trezoitão, posso lhe dizer, senhor juiz, que tudo começo com um vício. Daqueles mais odiosos, malditos, capazes de reduzir o viciado a um punhado de olheiras ansiosas. Eu mal sabia ler, quando me caíram nas mãos uns tais livros de bolsos sebentos, de encadernação frouxa, capas com desenhos exagerados, personagens ávidos por reviravoltas ligeiras, e histórias urgentes contadas em capítulos irresistíveis que levavam a outros e mais outros. Foi assim que passei por ranchos, invadi saloons, duelei pisando no barro seco da avenida principal, montei cavalos no exato momento em que o facínora mais próximo tentava me fulminar. Por manitu, era uma vida vulgar, mas deliciosa. Eram leituras chãs, mas eu não conseguia ficar um só dia sem alimentar a mente com aqueles livrinhos.

Marcial Lafuente Stephania, "Um ataúde por herança", ainda guardo restos de títulos dos livrinhos e vestígios de nomes dos autores - certamente falsos, como os apelidos dos traficantes, mas na época eu não sabia e hoje não me importo. O ano escolar ficou em risco, mas diante da realidade de colegas que foram bem mais fundo do que eu e tiveram de repetir toda a matemática, abri os olhos e ousei contemplar minha própria decadência subletrada. Tentei os índios brazucas de José de Alencar - foi difícil. Dei uma chance aos mortificados de Bernardo Guimarães - e já bateu melhor. Passei de ano, fiz uma dieta bem forte à base de Maria José Dupré e, me sentindo mais fortalecido, arrisquei os temperos ardentes de Aluízio de Azevedo. Por pouco, não cai na panela pré-antropológica de Lima Barreto. Não, mas quando vi, estava completamento vendido às explorações humano-cariocas do bruxo do Cosme Velho. E foi assim que me salvei.

Salvei-me, em parte. Porque dos velhos tempos, ficou o clarão escuro da curiosidade, essa megera dos olhos de quem lê, tirana eternamente insatisfeita que, de tempos em tempos, atira-me entre gargalhadas às mais conhecidas carnes podres do mercado literário. E é por isso, pela saudade dos velhos tempos de viciado, e pelo brilho fosco de uma curiosidade que eu nunca consegui deixar de lustrar, que capitulo e vou. De maneira que, na próxima vez em que você me flagrar qual um porco sujo e decadente devorando ávido e faminto o pasto viscoso e impuro das letras vis de um Dan Brown ou um Paulo Coelho, tenha piedade de um viciado. Não lhe atire um best-seller, da mesma forma que você não deve dar comida aos macacos no zoológico.

Lembre-se: sou um leitor anônimo que tenta, todos os dias, manter uma certa distância dessas bibliotecas suspeitas. Nem sempre sou vitorioso, mas o barato da leitura tem pra mim essas gradações de sentido e intensidade. Talvez eu não goste exatamente de literatura - talvez eu goste de livros, e isso seja o bastante para me manter vivo, contra todos os prognóstico que a saúde pública faz sobre o destino incerto dos viciados.

*"O Código Da Vinci" é ótimo, mas "Anjos e Demônios", em matéria de elocubrações narrativas a partir de elementos de história, arte e geografia e religião, é muito melhor. Agora me espera o "Ponto de Mutação". O importante é manter o vício.

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