sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um ano de casa nova (2)



Nenhuma casa existe solta no espaço - é preciso localizar, e junto com a localização vem suas circunstâncias urbanas. Feito isso, a casa - nova, velha, reformada ou o que seja - ganha sua narrativa. Toda habitação digna tem sua biografia - e no caso das casas, geralmente são histórias bem mais ricas do que aquelas que podem ser lidas nas paredes dos apartamentos. Para manter o paralelo, a gente pode dizer que apartamentos são como contos - mudam muito mais de dono, portanto comportam histórias breves, embora intensas. Já as casas são como romances. Algumas, verdadeiros Flaubert de portas e janelas: guardam, mudas, capítulos e mais capítulos de extensa e vasta prosa sobre famílias que ali nasceram, se reproduziram, se espalharam, brigaram, amaram, sofreram, comemoraram. Nós aqui mesmo, na nossa casa "nova", já tivemos, no final do ano passado, o maior festão com a família toda e convidados - no total, só os que dormiram aqui, eram umas 15 pessoas muito queridas. E a gente tinha acabado de chegar.

Por isso, é preciso ter uma reverência maior diante de uma casa. No caso desta aqui, a biografia começa em 1982, quando ela começou a ser construída. Parece que levou um tempo para ficar pronta. Foi residência de um empresário do setor de listas telefônicas nos tempos em que o Lago Norte, que é onde a casa fica, ainda era algo bem incipiente. O bairro nem tinha este nome - era a "Península". Depois, teve outros moradores, um dos quais, que aqui viveu por dez anos, foi um sujeito simpaticão, seu Danilo, um corretor de imóveis que viria a ser, anos depois, justamente aquele que nos vendeu a casa. O último dono era um jornalista piauiense que morreu alguns anos atrás, bastante conhecido entre a comunidade da imprensa brasiliense mais antiga - Abdias Silva, um cara que deixou Teresina para tentar a vida em Porto Alegre depois de mandar um carta pedindo emprego a ninguém menos do que Érico Veríssimo (e conseguiu o emprego, e eu avisei que casas têm histórias, sim, senhor!). Por último, morava aqui uma funcionária do Senado e sua mãe, o que garantiu que, mesmo antiga de mais de vinte anos, a casa ainda estivesse em boas condições, à prova de goteiras e outras surpresas que costumam preocupar novos habitantes.

Um pouco de antropologia urbana, pra encerrar: a casa fica no Lago Norte, mas destoa um pouco do padrão do bairro, que é habitado por famílias ricas e grandes em casas de dois andares (só temos um) com seis carros nas garagens (idem). Reafirmo o que disse no Sopão na semana em que mudamos: os vizinhos são gentis, é comum de sermos cumprimentados na rua (o que não acontecia na Asa Norte e é bem agradável). E há uma articulada rede de serviços e produtos que só existe aqui (no Lago Sul também, imagino), como as levas de piscineiros, batalhões de jardineiros (temos seu Zé Carlos, que atende à rua toda e é uma gentileza em forma de mineiro), e caminhões que vendem mudas de plantas as mais diversas (sempre com a placa "produzindo", ou seja, dando frutos), ou vendedores que armam minibarracas na avenida principal oferecendo caqui, ou então os mil e um anúncios de cachorro perdido - e até cachorro "achado", acredite, já vi vários -, sem falar no oferecimento do serviço de limpeza de pedras (muito comum e também necessário, não despreze). Onde mais tem esse tipo de coisa?

Tudo isso - os antigos moradores, os serviços oferecidos na avenida aqui perto, o ar agradável, embora meio deserto, da rua - são aspectos que dão sentido, identidade e um charme peculiar à nossa casa "nova". Como, de resto, deve acontecer com toda casa, toda habitação - basta a gente tirar o olho um pouco da gente mesmo e observar em volta, especular um pouco. Agindo assim, situamos a casa e a nós mesmos, pense bem. E fazemos da moradia alguma coisa a mais do que uma simples circunstância da vida, o que pode dar um pouco mais de sentido às nossas existências às vezes tão marcadas pelas mazelas do mundo.

P.S: Se você ficou curioso e quer saber um pouco mais sobre este pedaço do país e do mundo, sintone, via internet, a Rádio Península FM, no endereço http://www.peninsulafm.com.br/. (o link será o primeiro incluído entre os indicados da Hamaca, na lista ao lado)

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