quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Onde foi que nós erramos?

Do sempre afiado Luiz Fernando Veríssimo, na edição de hoje de "O Globo":

Bom comportamento
VERISSIMO

O governo Lula pode parafrasear o Chico Buarque e cantar para a oposição "Você não gosta de mim mas 'The Economist' gosta". Há no reconhecimento da revista um desagravo retroativo ao PT recém-eleito, que assustava com a promessa implícita de mudar tudo na economia, correr com o neoliberalismo, desprivatizar o que tinha sido privatizado e confiscar a prataria. Os 800 mil empresários que, segundo uma previsão da época, fugiriam deste caos hoje devem estar se congratulando por terem esperado um pouquinho. O monstro não era um monstro, afinal. O monstro tinha a cara do Palocci e era social-democrata como todo o mundo. O Brasil não só não afundou como, segundo a imprensa internacional, foi quem melhor soube boiar, na crise.

Mas aprovação da "Economist" é, um pouco, como abraço do Ahmadinejad.

Pode ser conveniente e bom para a reputação ou constrangedor e estigmatizante, dependendo dos círculos em que se anda. Você tanto pode achar formidável um governo do PT ser elogiado como um exemplo de conservadorismo responsável quanto achar estranho um governo do PT, logo do PT, ser chamado por uma das principais publicações do capitalismo mundial de exemplo de conservadorismo responsável. Em certos círculos do PT a pergunta que está sendo feita deve ser: o que foi que nós fizemos de errado para merecer tamanha honra? É como receber um dez por bom comportamento quando a reputação que se quer é a de bagunceiro. Imagino que tenha gente pensando em processar "The Economist" pela reportagem difamante.

Na capa da "Economist" com o título "Brazil takes off" (o Brasil decola), o Cristo Redentor aparece subindo como um foguete para alturas ainda incalculáveis, um símbolo da nova realidade no país. No filme "2012" o Cristo aparece desmoronando, no fim do mundo. De acordo com o filme e com as profecias, o Brasil só terá dois anos para aproveitar sua boa fortuna. Ao menos um alento para a oposição.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O leitor viciado


Ok: Dan Brown. Uma hora esse assunto desagradável haveria de chegar. Pois que seja agora, à queima-roupa, como um tiro disparado por um sofisticadíssimo gangster de romance noir. Um balaço em forma de pergunta, rápida e intolerante: por que ler Dan Brown? Como é possível a quem já fez escalou as alturas de Machado de Assis e Phillip Roth se abaixar para beber da água fétida que corre na sarjeta dos mais vendidos? Qual é a atração dessa futilidade paraliterária? O que leva o ser humano a ceder ao chamado da manada e se dar ao trabalho de ler esse subproduto para iletrados? O que merece a mente ordinária que admite não apenas ler, mas até sentir alguma satisfação no fruir dos parágrafos vulgares desses livros vendidos que nem sabão em pó nas mais vulgares lojas de departamentos?

Vou tentar manter a metáfora. Quem sabe a metáfora, na falta de um colete à prova de balas, me protege dos xerifes das letras. Assim, brandindo a metáfora como quem manipula um trezoitão, posso lhe dizer, senhor juiz, que tudo começo com um vício. Daqueles mais odiosos, malditos, capazes de reduzir o viciado a um punhado de olheiras ansiosas. Eu mal sabia ler, quando me caíram nas mãos uns tais livros de bolsos sebentos, de encadernação frouxa, capas com desenhos exagerados, personagens ávidos por reviravoltas ligeiras, e histórias urgentes contadas em capítulos irresistíveis que levavam a outros e mais outros. Foi assim que passei por ranchos, invadi saloons, duelei pisando no barro seco da avenida principal, montei cavalos no exato momento em que o facínora mais próximo tentava me fulminar. Por manitu, era uma vida vulgar, mas deliciosa. Eram leituras chãs, mas eu não conseguia ficar um só dia sem alimentar a mente com aqueles livrinhos.

Marcial Lafuente Stephania, "Um ataúde por herança", ainda guardo restos de títulos dos livrinhos e vestígios de nomes dos autores - certamente falsos, como os apelidos dos traficantes, mas na época eu não sabia e hoje não me importo. O ano escolar ficou em risco, mas diante da realidade de colegas que foram bem mais fundo do que eu e tiveram de repetir toda a matemática, abri os olhos e ousei contemplar minha própria decadência subletrada. Tentei os índios brazucas de José de Alencar - foi difícil. Dei uma chance aos mortificados de Bernardo Guimarães - e já bateu melhor. Passei de ano, fiz uma dieta bem forte à base de Maria José Dupré e, me sentindo mais fortalecido, arrisquei os temperos ardentes de Aluízio de Azevedo. Por pouco, não cai na panela pré-antropológica de Lima Barreto. Não, mas quando vi, estava completamento vendido às explorações humano-cariocas do bruxo do Cosme Velho. E foi assim que me salvei.

Salvei-me, em parte. Porque dos velhos tempos, ficou o clarão escuro da curiosidade, essa megera dos olhos de quem lê, tirana eternamente insatisfeita que, de tempos em tempos, atira-me entre gargalhadas às mais conhecidas carnes podres do mercado literário. E é por isso, pela saudade dos velhos tempos de viciado, e pelo brilho fosco de uma curiosidade que eu nunca consegui deixar de lustrar, que capitulo e vou. De maneira que, na próxima vez em que você me flagrar qual um porco sujo e decadente devorando ávido e faminto o pasto viscoso e impuro das letras vis de um Dan Brown ou um Paulo Coelho, tenha piedade de um viciado. Não lhe atire um best-seller, da mesma forma que você não deve dar comida aos macacos no zoológico.

Lembre-se: sou um leitor anônimo que tenta, todos os dias, manter uma certa distância dessas bibliotecas suspeitas. Nem sempre sou vitorioso, mas o barato da leitura tem pra mim essas gradações de sentido e intensidade. Talvez eu não goste exatamente de literatura - talvez eu goste de livros, e isso seja o bastante para me manter vivo, contra todos os prognóstico que a saúde pública faz sobre o destino incerto dos viciados.

*"O Código Da Vinci" é ótimo, mas "Anjos e Demônios", em matéria de elocubrações narrativas a partir de elementos de história, arte e geografia e religião, é muito melhor. Agora me espera o "Ponto de Mutação". O importante é manter o vício.

sábado, 14 de novembro de 2009

Bye, bye dias brancos


Depois de dias e dias brancos como Geraldo Azevedo nenhum desejaria, Brasília teve hoje um sábado ensoladado e calourento, úmido e abafado. Enfim, alguma coisa entre Natal e Belém, que eu nem conheço de fato mas conheço muito bem de fama. Falo do clima propriamente dito para me referir à atmosfera que tal configuração meteorológica acabou produzindo: um ar de costa nordestina na cidade, uma ansiedade por carnavais, ruas cheias, presepadas litorâneas, francas risadas caboclas, por aí.

O jeito foi molhar em água e secar em sol o espírito de outros tempos, mantendo vivas as conexões que ainda é possível ter com seus signos presentes. Para ir direto ao ponto, o que fiz foi botar pra tocar um punhado de discos que bagunçam qualquer calendário e subvertem o mapa das moradias, fazendo com que você se sinta irrecusavelmente em Recife - ou no Recife, como querem outros - um minuto antes do carro abre-alas do Galo da Madrugada dobrar a esquina da avenida Guararapes. Ou então lhe teletransportando, qual um invento espacial-brazula-delirante, para os últimos momentos do desfile anárquico da Bandagália pelas ruelas de Black Point, prontas para despejar seu corpo cansado ladeira abaixo rumo a um banho de mar em qualquer ponto da década de 80.

Foi assim que ouvi, praticamente às lágrimas, a Banda de Pau de Corda e o velho Alceu quando um pouco mais jovem, cantando Felintos, Guilhermes e Fenelons, enquanto eu tentava o mais fajutamente quanto é possível ensinar aos meninos uns rudimentos de frevo mal executado. Depois, fomos à Praça dos Três Poderes literalmente para dar milho aos pombos,mas os bichinhos já haviam ido para a cama, naquela escultura a que, na falta de título mais criativo, convencionou-se chamar de "Monumento ao Pegador de Roupa". O jantar foi no Mangai brasiliense, onde, para nossa surpresa, havia, combatendo valentemente o calor planaltino, um vento de extração nordestina como só se encontra na esquina da Deodoro com a João Pessoa, em Natal. De volta para casa, está rolando, como é de praxe ao menos uma vez a cada dois meses, o maior festão na casa do vizinho, carros subindo pelas paredes, dificuldade de chegar ao nosso portão - e aquele big sucesso, "Ciumenta", tocando a mil para a rua inteira cantar junto, fácil fácil como uma melodia do Jota Quest. É em momentos assim que a gente compreende como é possível gostar de tudo, até do sertanejo universitário, desde que uma porta secreta se abra ao final de um dia pontuado por saudosos insights.

P.S: Neste novo equipamento incorporado às mudanças da Hamaca, lá embaixo e ao lado, tem uns vídeos do Youtube que o autor sugere. Calma que ainda não vou colocar os gordinhos Menotti e Fabiano - grandes cantores a quem presto minhas homenagens - , mas começo com Elis Regina, que se não for consensual não sei mais nada de nada. E pra ficar ainda melhor na foto, acrescentei Maria Gadu, novinha em folha e tinindo de interessante. Aparecem lá de vez em quando umas coisas que não fui eu que escolhi, mas que parece que é meio obrigatório: evitem. Fiquem com Elis em várias fases e Gadu neste seu primeiro e belo momento. Os gordinhos Menotti, fiquem tranquilos, ao menos por enquanto, que só coloco lá quando tiver comido pelas beiradas as resistências dos que me leem essas mal digitadas de sempre.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O homem que idealizou a casa


Encontrei numa edição on line do jornal piauiense "Meio Norte" uma nota sobre a morte de Abdias Silva, o homem que construiu a casa onde moramos há pouco mais de um ano (embora, parece, nunca tenha morado de fato aqui), como está explicado na série
de postagens anteriores. Segue a reprodução da notícia, com mais detalhes sobre Abdias, que por sinal foi tema de um belo e tocante documentário feito pelo jornalista Paulo José Cunha, outro piauiense instalado em Brasília.


11/05/2006 - 19h:09
Faleceu hoje, 11, em Brasília, o jornalista e analista político ABDIAS SILVA, ex-redator dos jornais Correio do Povo, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil.

Abdias Silva era piauiense e foi amigo do também jornalista Carlos Castelo Branco, o Castelinho, chegando algumas vezes a escrever a sua coluna no Jornal do Brasil. Sob a recomendação de Érico Veríssimo, Abdias passou a integrar a redação do Correio do Povo, em Porto Alegre, e mais tarde foi transferido para o Rio, para a cobertura do Senado e da Câmara dos Deputados.

Os senadores Heráclito Fortes, Mão Santa e Alberto Silva fizeram um requerimento pedindo um voto de pesar pelo seu falecimento. Em seu requerimento, os senadores dizem que Abdias Silva não foi apenas um jornalista da cobertura diária dos fatos da vida política brasileira. Foi um analista da trajetória política contemporânea brasileira.


P.S: Na ilustração, obtida em um blogue dedicado aos fatos e à cultura do povo do município piauiense de Campo Maior, Abdias e Érico Veríssimo, em foto da época em que se deu o encontro dos dois ("Meu Caro Abdias" é exatamente o título do doc que PJ Cunha realizou).

Um ano de casa nova (2)



Nenhuma casa existe solta no espaço - é preciso localizar, e junto com a localização vem suas circunstâncias urbanas. Feito isso, a casa - nova, velha, reformada ou o que seja - ganha sua narrativa. Toda habitação digna tem sua biografia - e no caso das casas, geralmente são histórias bem mais ricas do que aquelas que podem ser lidas nas paredes dos apartamentos. Para manter o paralelo, a gente pode dizer que apartamentos são como contos - mudam muito mais de dono, portanto comportam histórias breves, embora intensas. Já as casas são como romances. Algumas, verdadeiros Flaubert de portas e janelas: guardam, mudas, capítulos e mais capítulos de extensa e vasta prosa sobre famílias que ali nasceram, se reproduziram, se espalharam, brigaram, amaram, sofreram, comemoraram. Nós aqui mesmo, na nossa casa "nova", já tivemos, no final do ano passado, o maior festão com a família toda e convidados - no total, só os que dormiram aqui, eram umas 15 pessoas muito queridas. E a gente tinha acabado de chegar.

Por isso, é preciso ter uma reverência maior diante de uma casa. No caso desta aqui, a biografia começa em 1982, quando ela começou a ser construída. Parece que levou um tempo para ficar pronta. Foi residência de um empresário do setor de listas telefônicas nos tempos em que o Lago Norte, que é onde a casa fica, ainda era algo bem incipiente. O bairro nem tinha este nome - era a "Península". Depois, teve outros moradores, um dos quais, que aqui viveu por dez anos, foi um sujeito simpaticão, seu Danilo, um corretor de imóveis que viria a ser, anos depois, justamente aquele que nos vendeu a casa. O último dono era um jornalista piauiense que morreu alguns anos atrás, bastante conhecido entre a comunidade da imprensa brasiliense mais antiga - Abdias Silva, um cara que deixou Teresina para tentar a vida em Porto Alegre depois de mandar um carta pedindo emprego a ninguém menos do que Érico Veríssimo (e conseguiu o emprego, e eu avisei que casas têm histórias, sim, senhor!). Por último, morava aqui uma funcionária do Senado e sua mãe, o que garantiu que, mesmo antiga de mais de vinte anos, a casa ainda estivesse em boas condições, à prova de goteiras e outras surpresas que costumam preocupar novos habitantes.

Um pouco de antropologia urbana, pra encerrar: a casa fica no Lago Norte, mas destoa um pouco do padrão do bairro, que é habitado por famílias ricas e grandes em casas de dois andares (só temos um) com seis carros nas garagens (idem). Reafirmo o que disse no Sopão na semana em que mudamos: os vizinhos são gentis, é comum de sermos cumprimentados na rua (o que não acontecia na Asa Norte e é bem agradável). E há uma articulada rede de serviços e produtos que só existe aqui (no Lago Sul também, imagino), como as levas de piscineiros, batalhões de jardineiros (temos seu Zé Carlos, que atende à rua toda e é uma gentileza em forma de mineiro), e caminhões que vendem mudas de plantas as mais diversas (sempre com a placa "produzindo", ou seja, dando frutos), ou vendedores que armam minibarracas na avenida principal oferecendo caqui, ou então os mil e um anúncios de cachorro perdido - e até cachorro "achado", acredite, já vi vários -, sem falar no oferecimento do serviço de limpeza de pedras (muito comum e também necessário, não despreze). Onde mais tem esse tipo de coisa?

Tudo isso - os antigos moradores, os serviços oferecidos na avenida aqui perto, o ar agradável, embora meio deserto, da rua - são aspectos que dão sentido, identidade e um charme peculiar à nossa casa "nova". Como, de resto, deve acontecer com toda casa, toda habitação - basta a gente tirar o olho um pouco da gente mesmo e observar em volta, especular um pouco. Agindo assim, situamos a casa e a nós mesmos, pense bem. E fazemos da moradia alguma coisa a mais do que uma simples circunstância da vida, o que pode dar um pouco mais de sentido às nossas existências às vezes tão marcadas pelas mazelas do mundo.

P.S: Se você ficou curioso e quer saber um pouco mais sobre este pedaço do país e do mundo, sintone, via internet, a Rádio Península FM, no endereço http://www.peninsulafm.com.br/. (o link será o primeiro incluído entre os indicados da Hamaca, na lista ao lado)

Um ano de casa nova (1)


No último dia 2 de novembro, completou-se um ano da nossa mudança para o que ainda posso chamar de "casa nova". Pois é como se fosse ontem, porque, descubro diariamente mesmo decorridos doze meses da mudança, todo dia é como se estivesse chegando agora carregado de caixas de livros, pilhas de CDs, apetrechos eletro-visual-sonoros e demais itens que compõem uma casa - e que são, os tais demais, a gente sabe, completamente supérfluos, como geladeira, fogão e mesa de almoçar e jantar. Pois é, como dizia, como se agorinha mesmo o caminhão de mudança tivesse dado ré e batido em retirada. Como se os gatos ainda estivessem farejando o novo ambiente - e eles se cansam de farejar? Como se a noite de hoje - e digo isso pouquinho antes de ir dormir - ainda fosse a primeira que vou passar no novo endereço.

Que bom, você deve estar pensando. É mesmo - mas temo quebrar um pouco sua expectativa. Essa sensação novinha em folha de que não se passaram 365 dias desde que aqui chegamos não se deve uma saudável disposição de minha parte de fazer do meu dia na casa "nova" um eterno recomeçar, como dizem títulos de filmes melosos ou de boleros tristes. O que acontece, de verdade - e temo que isso também lhe deixe aflito, meu caro e solitário leitor, que isso seja um dos inúmeros males de nossa época - é o fato de que, no somar e no subtrair das horas, como diria um tango suicida, percebo que passo muito menos tempo dentro desta dita casa "nova" do que pretendiam meus iludidos planos de quando para aqui me mudei. Pessoal, na boa: a gente vive ou não vive na rua? Me repondam. Não digo "na rua" no sentido lúdico-democrático, que é aquele "estar na rua" participando da vida coletiva, das comemorações e dos encontros com os quais se faz a vida em comunidade. A rua em questão é outra, bem menos convidativa - é o cenário dos compromissos formais, do trabalho atrasado, do trânsito ansioso. Pois bem: a gente vive é na rua. E a casa "nova", com sua demanda adicional (tarefas como consertos, compras inerentes à nova forma de moradia, distância maior, acesso mais difícil) vai fazendo com que a gente, pouco a pouco, a habite cada vez menos.

Na postagem anterior, falei aqui dos caprichos dos livros clássicos. Pois também vivo às voltas com os caprichos da casa "nova" (e um deles, certamente, são essas aspas que me fustigam o texto). Em resumo: no apartamento onde morava, com demandas a menos, parecia que eu parava mais quieto sob o teto menor, mas menos exigente. Aqui, na casa "nova" (não tem jeito, não consigo me livrar das aspas), tenho uma moradia que me acomoda melhor, com uma varanda generosa, um oitão que é dez pra se ler de manhã, uma garagem que não me obriga a ter perícia de Fórmula Um para estacionar o carro, um quintal que refresca pelo menos a visão, mas nem sempre posso aproveitar disso com a mesma frequencia e intensidade que a antiga moradia, sem me fornecer nenhum desses luxos, entretando me proporcionava.

Estou chorando em vão? Talvez, mas sobretudo estou constatando uma realidade que não é só minha: puxa vida - ou "que lástima", como diria o emburrado Dr. Smith perdido na imensidão do espaço - a gente vive mesmo é na rua. Ainda assim, na base da vã teimosia, posso encerrar esse balanço de um ano de casa "nova" pelo menos com uma listinha assim cabisbaixa dos meus recantos preferidos, esses que resistem bravamente aos compromissos e me seguram em casa de vez em quando: a rede da garagem, onde já passei boas horas em companhia de seu Kafka, seu Salinger e outros velhotes mais; a sombra da ameixeira esquisita (ninguém identifica de pronto a espécie, e um ano depois também há quem diga que é um pé de nêspera) no quintal; e o já referido mini-oitão onde passei vastas manhãs andando pelos buracos colombianos com o então jovem e promissor Gabriel García Marquez décadas antes da fama. Parece muito? É impressão. A casa é boa, gente, e o potencial ocioso que existe na relação custo-benefício entre eu, morador, e ela, meu abrigo, tem espaço para muito mais. Quem sabe no dia em que eu finalmente conseguir expulsar aquelas tais aspas, e a casa deixe de ser enfim algo novo, como um vinho que precisa ser envelhecido muito além de uma dezena de meses, a gente possa então coabitar um pouco mais?

Os caprichos dos clássicos

Hoje vamos do clássico ao lixo, com pausas para respirar, é claro. Passo todo dia pela sala e dou um alô distraído para a estante de clássicos de capa dura e títulos de letras reluzentes. Não é nada demais, só uma série de livros daqueles que são vendidos nas bancas, do tipo "imortais da literatura mundial", naquela forma de marketing tão manjada de republicar textos consagrados - e de direitos autorais liberados - para distraídos compradores de jornais. Mas, fetichistas cultuais de marca maior, a gente gosta deles, e cai alegremente na armadilha. Não há de ser nada: pelo menos assim a gente lê, efetivamente lê, um clássico de c maiúsculo de vez em quando. E por que não o fazemos com maior frequência, por que dependemos do lançamento de mais uma coleção que compramos na banca com uma assiduidade de consumidor de cultura de massa? Talvez porque os clássicos, ao contrário do que tantos dizem, não são mesmo assim tão fáceis. Os clássicos têm seus caprichos: suas capas duras que tanto atraem quanto atemorizam; suas letras miúdas; suas manchas de textos aparentemente impenetráveis ao olhar poroso do leitor atual; seus personagens funestos e suas tramas compostas de alegorias esfumaçadas que quase sempre nos remetem a casarões embolorados e colinas fantasmagóricas.

Sem falar no capricho maior dos clássicos, que é o de nos desafiar nas primeiras páginas, tirando a mente do leitor do registro coloquial em vigor e arrastando-o para outros domínios, de uma escrita congelada pela qualidade mas ainda assim dificultada pela prosódia absolutamente diferenciada. É como um muro: o leitor do clássico tem que saber escalar esse paredão antigo e compacto, achar as cavidades quase imperceptíveis numa superfície alisada pela ação do tempo literário, agarrar-se aqui e ali, subir mais um pouco, chegar o topo e, enfim, lá pela página cem, passar para o outro lado. Pronto: aí ele já estará em outro tipo de território, perfeitamente aclimatado. É quando vem o prazer da fruição que apaga as referências do computador ao lado, da tevê ligada, da vida multimídia, do compromisso esperando no tampão da escrivaninha.

Pelo menos comigo é assim. E foi sabendo disso que, numa daquelas passadelas pela estante de clássicos da sala, arrisquei um olho para meu primeiro Kafka. Sim, eu sei, não precisa lembrar que não pega nada bem revelar aos 43 anos do segundo tempo que até esta referida data este que vos digita jamais havia lido tão fulgurante mito da literatura mundial. Ah, se vocês soubesses dos meus outros furos neste departamento. Por enquanto, vamos ficar no homem da barata. Falando nele, não fui ao célebre texto da barata - este vai continuar, por enquanto, anotado na minha caderneta de omissões imperdoáveis - mas a outro título do escritor que só é conhecido hoje, como todo mundo sabe, graças ao amigo Max Brod que, contrariando sua vontade, a dele, Kafka, expressa no leito de morte, não queimou os originais que o escritor tinha em casa. Sem pestanejar (eu sabia que algum dia nesta vida teria a chance de usar essa expressão tão cara às minhas leituras infanto-juvenis), avançei para a estante de clássicos e agarrei, antes que pudesse mudar de idéia, "O Castelo". Por esta razão, estou há dias convivendo com a difícil e absurda tarefa do senhor K. (não confundir personagem com autor, embora provavelmente este tenha sido o propósito) que tenta, sem sucesso, estabelecer algum contato que seja com os senhores do Castelo para onde foi chamado a fim de realizar um trabalho de agrimensor, sua profissão. Por mais que tente, o senhor K. não consegue passar da barreira dos moradores da vila que fica abaixo do Castelo, na explícita hierarquia simbólica que Kakfa satiriza com a maior seriedade nas páginas do romance inacabado. Estou na metade, mas sabendo - como informa a última página, "fim do manuscrito" - que este é um dos textos incompletos que Kafka deixou, já estou de expectativa preparada para saber que K. jamais chegará ao Castelo. O que importa, mais que o final inexistente, é o percurso inútil, do homem que tenta realizar sua missão e não consegue mais do que andar em círculos sem sequer se aproximar da ponta mais distante deste cordão absurdo que a narrativa desfia.

Não é um livro otimista - lembre-se, é um clássico. É um exercício de especulação sobre a inutilidade tantas vezes dominante. E embora eu, leitor, tenha uma visão ligeiramente mais animadinha do que seja a nossa breve passagem por este mundo, não tenho como não admitir que essa expressão do vazio é efetivamente um elemento da condição humana.

O Kafka que encontrei no "Castelo" não é intrigante como o "Rei Lear" de Shakespeare, ou divertido como o "Dom Juan" de Molière - e todos são clássicos, pra ver que até entre eles existe diversidade, o que invalida muitas das considerações gerais que sobre eles são feitas, inclusive as deste texto aqui. Mas o que me incomoda mais, na escalada daquele muro a que me referi algumas linhas acima, é o cenário tão diverso, o enxugamento das personas, o caráter fortemente simbólico de camponeses, tabernas, florestas e do próprio castelo inalcançável. Leitor educado nas tão próximas cenografias sertejanejas e brasileiras de um José Lins, um Jorge Amado e um Graciliano Ramos, ainda sofro do mal de me situar em geografia tão diversa quanto a das plagas européias quase orientais de onde vêm tais romances. Talvez eu esteja lendo as piores traduções, mas o fato é que o senhor K. me impõe a mesma dificuldade do jovem Raskólnikov, do "Crime e Castido" russo, onde eu tremia de frio entre páginas, tundras e rios congelados, num bloqueio de identificação que subtraiu grande parte do prazer da leitura. Curioso é que me senti mais confortável do que nunca navegando na "Jangada de Pedra" de José Saramago, aquela extensão de terras formada por Espanha e Portugal à deriva no indomável Atlântico. Vai ver são as proximidades invisíveis que ligam Seridó e Sevilha, Lisboa e Parnamirim para ser mais atual. E todos são clássicos - velhos e novos. Castelos difíceis mas muito interessantes de se invadir e penetrar.

Falei que iria do clássico ao lixo, mas a divagação se impôs e a postagem abusou. O lixo vai ficar para as próximas, mas também há ainda alguma porção de bom gosto para que a leitura se torne suportável. Ia falar do ensaio filmado "Tout va bien", o "Tudo vai bem' de Jean Luc Godard que, consumidor cultural eternamente defasado, também só agora pude apreciar. Um lindo dircurso audio-visual sobre o fim das utopias feito em 1974 - um filme para ser ver nos estertores das comemorações pelos vinte anos da queda do muro de Berlim pelo que tem de antecipatório (e não apenas da queda, mas do discurso que se seguiria a ela). Antes que alguém se empolgue, tenho que dizer que também fazia parte do roteito minha mais nova - e, mais uma vez, defasada - incursão no universo chão do senhor Dan Brown, pelo qual começo a nutrir uma dependência submarina. Fica como gancho para as próximas, se é que ainda haverá alguém por aqui.

(Republicado da Hamaca original, para dar continuidade ao blogue)

Novo espaço, mesma disposição

É isso, pessoal: a rede poticandanga e latinoamérica de Poti está mudando de armador, mas pretende continuar balançando para o gáudio de leitores aturdidos por tanta informação conflituosa no mundo real. De nossa parte, garantimos, neste novo endereço, manter o rangido familiar (sem o qual, dizem os especialistas, uma rede não é uma rede) que garante a proximidade do contato, a coincidência dos interesses, a distorção diante dos grandes barulhos midiáticos convencionais que querem calar o mundo. E haverá, igualmente, o mesmo espaço para a poesia, a letra, a música, a imagem que dividimos neste doce esporte que é descobrir formas de ver o mundo de maneira menos dolorida. Que elas existem, é fato - mas muitas vezes é preciso saltar da planura fria do chão para o balanço quente de uma boa hamaca e só então enxergar tais visões. A mudança deve-se a uma mera preferência gráfica - e também ao melhor manuseio, estando agora a Hamaca sob o mesmo teto do já então velhinho Sopão. Acima, a título de continuidade, vai a republicação da última postagem da versão anterior. E obrigado pela companhia.

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...