Quando ouve
falar que no filme tal há uma cena de tal maneira difícil é comum que o
espectador potencial dê as costas e saia do cinema sem nem mesmo haver entrado.
Ou seja: sai-se com o típico “obrigado, mas esse filme aí eu não vou ver”. Foi
exatamente essa a reação que tive ao ouvir falar de “172 Horas”. E se aconteceu
comigo estou cheio de razão para dizer que é justamente este tipo de filme –
este que tem uma cena célebre por difícil de ver, engolir e digerir – é exatamente
o melhor filme, por tirar o cidadão acomodado na poltrona do conforto estético e
artístico que vai lhe recobrinco a percepção com uma camada de cera de
opacidade que só o diminui como apreciador do espetáculo do mundo e da vida.
A cena
célebre de “172 Horas” todo mundo sabe. E se este não é o seu caso, já vou
dizendo que este é aquele filme em que um garoto apreciador de escaladas radicais
fica preso numa fenda de rocha e, para sobreviver, precisa cortar o próprio
braço com um canivete cego. Sentiu? Quer
parar de ler por aqui? Pare, não. Faça como eu, enfrente o filme e você vai se
surpreender.
“172 Horas”,
embora não pareça, é (também) entretenimento puro, bem realizado, ágil, meio
videoclip no que esta técnica tem de mais instigante, musical, ligeiramente
rock and roll na maneira como encara o mundo, um pouco à margem na forma como
cultiva seu personagem, um tanto ambíguo no jeito como empacota sua história,
apenas sugerindo dados que, descritos em detalhes, poderiam turvar algo que
funciona muito melhor assim, com suas imprecisões e impressões distantes.
Mas tem a cena
do corte do braço, que você fica o tempo todo imaginando quando e como vai se
dar. Acontece que o filme corre de tal maneira macio em sua aspereza geográfica, doce em sua humanidade juvenil, que quando a cena vem o espírito já
está preparado. Ela não é nem rápida demais para parecer visualmente indolor, tampouco espetaculosa a ponto de atrair a morbidez das platéias dadas à
banalização da violência. É uma cena, como dizer?, artística no que esta
palavra tem de mais potente. É longa, sofrida, vivenciada em toda a sua
violência estética, mas não ridícula ou gratuitamente traumática. Mas não vou lhe enganar: o
uso apuradíssimo dos efeitos sonoras vai fazer você, espectador, sentir a
pontada do corte de cada nervo enquanto o garoto se desfaz do braço preso à
pedra.
Mas é
preciso que seja assim: não há como negligenciar o ponto culminante de um
filme que, ao lado de um ato violento inflingido contra a própria pessoa,
coloca em cena fundas questões sobre solidão e multidão, natureza e sociedade
como este faz usando belíssimos planos de cinema. Usando o entretenimento como matéria para um salto maior, desde que o público do lado de cá esteja disposto a este outro corte que também pode ser bem violento embora de outra espécie. “172 Horas” tem uma cena,
como se diz?, chocante, mas, pode acreditar, é um poema visual de natureza pop-metafísica. Para apreciá-lo, portanto, certifique-se de não cortar fora sua percepção.