terça-feira, 15 de novembro de 2011

Casa e Jadim, segundo Paul Auster



Existem bons filmes cuja estrutura narrativa lembra uma casa bem construída. Você passeia pelo jardim, entra pela porta da sala, recebe de cara aquele impacto de um ambiente aconchegante, passa pelo corredor, dá uma olhada nos quartos, sente o cheiro de comida saborosa na cozinha e depois senta numa cadeira ao lado de um copo de cerveja para apreciar as crianças brincando no quintal. Essa é a casa-filme tradicional, tipo começo-meio-e-fim. O cinemão americano, especialmente os clássicos da era dos grandes estúdios, forma um gigantesco conjunto habitacional de casas assim. É meio padronizado, sim, como todo conjunto habitacional - para atualizar, como todo condomínio da classe média atual. Mas também é diversão garantida com a dose de inteligência sem a qual qualquer casa vira abrigo contra a chuva e qualquer cinema é só ilusão de ótica para matar o tempo.

Mas existem também excelentes filmes que lembram casas bem planejadas, embora de maneira diversa. Você observa o jardim, entra pela porta, claro, e também percorre a casa toda até parar para a cerveja no quintal. A diferença é que não há apenas uma porta. São várias. Também não existe somente um corredor. São muitos. O número - e a posição - dos quartos também é mais flexível. Essa outra casa-filme não precisa ser uma mansão de ex-ministro derrubado por denúncia de corrupção: basta ser apenas diferente. De maneira que a impresssão que a casa deixará no visitante varia conforme a porta que ele escolheu - a frontal, a lateral, o portãozinho dos fundos, ou mesmo aquela janela sem grades que alguém marotamente resolveu pular só pra ver qual seria o resultado visual da aventura.

"O Mistério de Lulu",o mais recente filme do escritor Paul Auster, que com esse trabalho trocava a imagem escrita pela palavra filmada, é uma casa do tipo que descrevi no parágrafo imediatamente acima. Na primeira hora de exibição, você tentará percorrê-lo como quem explora uma casa tradicional. Lá pelo meio, o espectador percebe que há várias formas de entrar na história do músico de jazz às voltas com uma misteriosa pedra que emite um brilho azulado e ilumina os desvãos mais sombrios das pessoas. Por isso é possível assistir ao filme várias vezes, sempre observando - entrando nesta casa - sob uma perspectiva diferente - ou por meio de portas variadas. E, lá dentro, escolher itinerários diversos. É assim que se desvenda o mistério deste e de outros bons filmes.

(22-07-99)

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