Amanhece um dia de chuva sobre o Sudoeste organizado que
me arremessa feito nuvem de verão diretamente sobre os telhados curvos da praia
de Pipa. Não agora, mas lá pelos idos de 1993-94, quando fomos todos, eu,
Rejane, os cunhados Sandra e Novo com Raísa criança e Rafael ainda bebê, meu
pai e minha mãe passar um fim de semana na pousada de Ana Anita, a “Praiana”
que fica naquela rua onde durante anos a areia natural venceu o calçamento
oficial.
Houve sol (fotos abaixo), mas houve também muita chuva, razão da
nostalgia disparada pelo gatilho da manhã em branco. Não tinha importância,
como não tem agora, já que o que contava então e conta aqui é a emergência da
umidade litorânea. Só quem veio do sertão habitualmente seco – mas extremamente verde e multicor quando as chuvas da infância vinham – pode entender a força
dessas águas. Às vezes só o tempo nublado já basta para anunciar sua iminente presença,
aproximação amiga.
À tarde, víamos a chuva cair como um cobertor macio sobre
os telhados de Pipa, retocando as cores daqueles tetos, muitos deles de casas
ainda humildes hoje derrubadas para dar lugar aos novos empreendimentos. A
praia toda, o horizonte inteiro que um quarto tipo família no andar superior da
pousada oferecia à vista, ganhava uma mão de pintura natural que fazia ainda
mais luminosa a paisagem em volta. Lembro da fachada de um antigo bar, o
Hendrix, e da linha do mar com um verde-azul mais saturado boiando sobre os
telhados, caixas d’água, murinhos e folhas de coqueiro. E a sinfonia dos pingos
regendo tudo.
Essa umidade entra pelo corpo da pessoa, faz algo como
uma transfusão natural do líquido que domina grande parte do nosso organismo.
Quem já nasceu em meio a ela pode não perceber, mas os esqueletos sertanejos
como eu a experimentam como um milagre não registrado nos cartórios vaticanos.
É exatamente o mesmo tipo de sensação que tinham quando, adolescente, passava
temporadas na casa do amigo Ítalo em Recife, e também mais tarde quando atravessei
todo o ano de 1984 cursando Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco:
bastava o ônibus da Viação Progresso, vindo de Campina Grande, aproximar-se de Goiana
e aquele verde da costa já começava a operar suas químicas na minha ressecada
pessoa. A Zona da Mata sempre terá algo de paraíso perdido ou inalcançável - e o nômade Severino do poema de João Cabral é prova disso.
Até hoje há uma planta que me evoca essa epifania de geografia humana. Queria
ser minimamente conhecedor da botânica para indicar o nome aqui: tudo o que
posso dizer é que ela cheira a umidade do mar e felizmente está em todo lugar,
como se fosse uma embaixada da costa onde menos se espera. Quando isso
acontece, eu e Rejane quase disputamos para ver quem detecta primeiro: “Aquela
planta...”
Estrada de Trancoso
Estrada de Trancoso
Anos mais tarde o prazer da imersão neste mundo-litoral se faria ainda mais forte. Foi quando visitei a Costa do Cacau e espalhei restos do meu queixo caído nas estradas deste litoral baiano ao deparar com a autêntica paisagem descritas nos romances de Jorge Amado - e, mais impressionante ainda, com pessoa que pareciam ter pulado dos livros diretamente à realidade.
Não é que a gente duvide dos autores que nos habituaram à dádiva da leitura: é que é muito forte - ao menos para corações desprevenidos, como o meu - dar de cara na estrada velha de Trancoso com uma baianinha cheirosa e adornada que por todos os efeitos lembra mais um personagem caprichosamente composto do que alguém de verdade. O mesmo se pode dizer de um velho tangendo bichos no acostamento de uma BR próxima a Itacaré - assim como de todas as crianças que habitam essa comunidade famosa pelos costões de coqueiros e rochas junto ao mar (registros dessa viagem nas fotos abaixo)
Toda essa peroração pessoal em torno de chuvas, litorais, telhados e praias o senhor leitor encontra em termos muito mais apropriados em Gilberto Freyre, fonte evidentemente muito mais autorizada. Sugiro que vá direto a “Nordeste”, o livro do velho sociólogo onde achei, em milimétricos detalhes e calorosas interpretações – o melhor de Gilberto é que ele escreve sempre com paixão – as explicações para esse meu apego nostálgico a essas coisas do litoral.
Não é que a gente duvide dos autores que nos habituaram à dádiva da leitura: é que é muito forte - ao menos para corações desprevenidos, como o meu - dar de cara na estrada velha de Trancoso com uma baianinha cheirosa e adornada que por todos os efeitos lembra mais um personagem caprichosamente composto do que alguém de verdade. O mesmo se pode dizer de um velho tangendo bichos no acostamento de uma BR próxima a Itacaré - assim como de todas as crianças que habitam essa comunidade famosa pelos costões de coqueiros e rochas junto ao mar (registros dessa viagem nas fotos abaixo)
Toda essa peroração pessoal em torno de chuvas, litorais, telhados e praias o senhor leitor encontra em termos muito mais apropriados em Gilberto Freyre, fonte evidentemente muito mais autorizada. Sugiro que vá direto a “Nordeste”, o livro do velho sociólogo onde achei, em milimétricos detalhes e calorosas interpretações – o melhor de Gilberto é que ele escreve sempre com paixão – as explicações para esse meu apego nostálgico a essas coisas do litoral.
O que o morador do casarão de Apipucos me disse, como
quem assobia uma canção de Caimmy ao pé do ouvido, foi que o segredo deste
fascínio está na doçura muito própria dos tabuleiros do litoral nordestino. E, embora se apoie nisso, a conexão com o cultivo da cana-de-açúcar vai além de uma abordagem meramente econômica.
Mel de engenho
"A cana-de-açúcar é uma planta profundamente ligada à água, ao contrário da planta que foi sua concorrente na ocupação do espaço nordestino, o algodão. Daí a separação entre as áreas de cana e as de algodão, entre o Nordeste úmido e o Nordeste seco", antecipa Manoel Correia de Andrade, professor da UFPE, na apresentação do livro de Freyre.
"A cana-de-açúcar é uma planta profundamente ligada à água, ao contrário da planta que foi sua concorrente na ocupação do espaço nordestino, o algodão. Daí a separação entre as áreas de cana e as de algodão, entre o Nordeste úmido e o Nordeste seco", antecipa Manoel Correia de Andrade, professor da UFPE, na apresentação do livro de Freyre.
Ao que o autor acrescenta, depois de reclamar da visão de um Nordeste unificado então vigente - hoje, bem menos, graças à feliz intervenção dos produtores de cultura desta nossa variada região: "Esse Nordeste de figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco é apenas um lado do Nordeste. Mais velho que ele é o Nordeste de árvores gordas, de sombras profundas, de bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredondada quase em sanchos-panças pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e sempre o mesmo, pela opilação, pela aguardente, pela garapa de cana, pelo feijão de coco, pelos vermes, pela erisipela, pelo ócio, pelas doenças que fazem a pessoa inchar, pelo próprio mal de comer terra."
Tem mais: "Um Nordeste onde nunca deixa de haver uma mancha de água: um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa. Onde a água faz da terra mais mole o que quer: inventa ilhas, desmancha istmos e cabos, altera a seu gosto a geografia convencional dos compêndios."
E segue o livro com sua antropologia poética que abarca tanto o cheiro de chuva quanto as pestilências que o litoral, como o sertão, também tem. Doce
ciência a embrulhar com papel de pensamento a matéria que os dias de chuva nos
entregam em forma de saudade.
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