segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

SOLIDÃO, LIXO E BOAS-VINDAS


Não existe solidão na cidade de São Salvador. Como diz minha cunhada Sandra, “é gente, é gente, é gente!”. Em praticamente todos os lugares. O Rio Vermelho, como já comentei em outras ocasiões, acabou sendo uma espécie de amostra soteropolitana sem maiores agonias – se você, claro, abstrair a ansiedade dos motoristas em geral, que nem ali, entre o banquinho de Jorge e Zélia e o Mercado do Peixe, pisa no freio. Mas a aquarela local que você sempre viu por aí, na revista, na tevê ou na imaginação gerada pelos livros do nosso amigo, está toda desenhada ali.
Mas nem tudo é perfume de dendê – pro pessoal que é fã do tempero. O vuco-vuco de todos os lugares me incomodou um pouco, logo eu que sou dado à massificação, um processo que me aciona no mínimo a curiosidade. Mas sejamos menos rigorosos com os ruge-ruges da baía de todos os engarrafamentos: logo mais acima, em terras alagoanas, também encontramos tudo superlotado, a ponto de a muito custo se encontrar uma pousada onde refazer o esqueleto antes de seguir viagem. Tentamos Barra de São Miguel e necas. Arriscamos a Praia do Francês e... foi por pouco. Na manhã seguinte, Maceió e todo o seu litoral norte prateavam-se de gentes ao sol. Achei as lagoas que antecedem Maceió menos cheias do que de costume, mas alguma coisa neste novo Brasil tem o direito de estar um pouco mais vazia, nem que seja para compensar os excessos do outro lado da divisa.
Em Natal, nada de praia no primeiro dia. Só família, fa-mí-liaaaa como diz Bernardo na hora de registrar em fotos o encontro da parentada na porta do restaurante em Areia Preta. Somente nesta segunda-feira descemos à Ponta Negra, onde sempre se encontra um brasiliense tirando férias do Planalto Central. Hoje quem estava lá era o nosso amigo Washington, que trabalhou com Rejane no Unafisco e em outros sindicatos do sempre cheio Setor de Diversões Sul. Mas o registro mais importante nas terras de Poti foi o que verifiquei assim que coloquei o pé nas escadarias que dão acesso à praia: alguma coisa estava sendo esvaziada.
Alguma coisa muito indesejável, que há tempos está para ser recolhida das ruas de Natal.Todo mundo que tem um mínimo de informação sobre os últimos acontecimentos na cidade do sol já matou a charada: sim, antes mesmo de pisar na areia fomos premiados com a visão de um grupo de garis recolhendo os molhos de lixo acumulados no que restou do calçadão de Ponta Negra. Fiquei grato pela visão e reforcei meu otimismo diante da gestão de Carlos Eduardo que está recomeçando. Boa sorte e juízo, prefeito. Mais do que uma providência inadiável, ver os nossos heróis anônimos em ação contra o lixo político geral que pairou sobre a cidade nos últimos anos foi um ótimo sinal. As melhores boas-vindas que a gente poderia ter, especialmente quando se dá uma olhadinha ali ao lado, no outro bairro, em outra praia, na avenida popular que leva ao Pitimbu Maria Izabel Resort, e percebe, pelo olhar e pelo cheiro, o tanto de sujeita que ainda precisa ser mais e mais recolhida.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

OS CANTOS DO RIO VERMELHO




Salvador é um almanaque urbano de alta concentrabilidade estética e humana à disposição de seu feliz visitante. Hoje de manhã, bastou um rápido mas provicencial passeio a pé por algumas ruas do bairro do Rio Vermelho pra gente se dar conta da jogralesca visual de paredões, fachadas, rostos, barcos e demais elementos que compõem a parte da cidade onde morou o casal Jorge e Zélia. Um grande livro escrito em grafites, janelões, casarões reformados ou decadentes, expressões faciais e cenas cotidianas de uma cidade que parece, o tempo todo, ao menos aos olhos de quem está aqui de passagem e seco por conhecê-la tanto quanto seja possível nessas circunstâncias, um grande filme brasileiro.

É isso: você caminha um pouco entre o hotel impessoal de quarto climatizado e o pequeno porto do bairro e se dá conta de que parece ter uma câmera ancestral embutida no olhar. Um grupo de pescadores fazendo hora sob uma espécie de giral ao lado de uma venda de peixe fresco é, sob qualquer ângulo que se veja, um still de um filme-ensaio de Glauber Rocha. Uma senhora baiana que passa, elegante que só a gota no seu vestido ilustrado por flores, resume uma civilização inteira crescida à sombra desses casarões, sem que seja preciso legendar a visão - um desses presentes que o viajante desligado das falsas facilidades dos pacotes turísticos encontra apenas se estiver disponível para ver.

O Rio Vermelho onde morou nossa amiga Flávia Assaf está repleto de narrativas visuais em suas paredes, de crônicas baianas em suas pequenas cenas do teatro real das ruas, de fragmentos de vida que nem o trânsito selvagem consegue encobrir. Saímos às ruas eu e Rejane num rápido passeio, que desde sempre é a forma como gostamos de apreciar um novo lugar, e vimos e ouvimos histórias de todos os tons, formatos e inspirações sem que fosse preciso nada além de manter os olhos bem abertos. Estivemos diante de lugares que pareciam poemas de Castro Alves, sentamos à sombra de uma pequena enseada que valia por uma trilogia de Jorge Amado, pisamos em pedras que emanavam o teatro de Dias Gomes. A cidade cantou ao nosso ouvido usando as vozes de cimento e alvenaria do Rio Vermelho, pela boca de suas barcaças, via a música do vento que alimenta seus largos. O almanaque foi abrindo suas páginas enquanto a gente passava - e o ilustrando o máximo possível entre as cantoneiras invisíveis mas notáveis deste nosso álbum de viagem.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

ABANANDO A BAHIA



Assim como a Bahia não é somente o litoral recortado de Salvador nem apenas a doce umidade de Santo Amaro, há mais de uma Dona Canô nos esperando nos mil recantos da terra de Jorge Amado. Por exemplo, as Canôs que habitam os penhascos de Lençóis, como Dona Edite. E não é da célebre brasileira Edite do Prato que estamos falando, mas de outra, que mantém numa humilde porém honesta lojinha na capital da Chapada Diamantina a tradição do artesanato em palha. Conhecemos Dona Edite, suas peças simples e sua simpatia complexa, ao entrar na lojinha, levados pelos meninos, impressionados com um ou outro objeto exposto.

O principal deles foi um abanador de palha. O tipo do objeto que estabelece conexões inesperadas entre o presente de um período de férias e o passado distante e bem guardado dos relicários da memória infantil. O abanador revelou-se, em toda sua gigantesca simplicidade artesanal, um negócio ancestral, que, sem que percebesse com qualquer destaque, fez parte da vida da minha casa de menino com uma onipresença que somente o passar do tempo – e uma visita inesperada a um lugar como a loja de Dona Edite – tem poder de evocar, redimensionar, projetar no salão reservado onde as boas recordações nos recebem sobre tapetes vermelhos. Eu disse um abanador – e não um leque: que aquele era uma forma barata do outro. Abanador é mais “vida simples”: de palha, rústico, uma peça de engenharia formatada por mãos provavelmente femininas que vão tecendo o tempo enquanto manipulam com sabedoria a fibra que a natureza entrega de graça.

Antes de servir para aplacar o calor dos pescoços individuais, o velho abanador que até hoje Dona Edite vende por cinco pratas em Lençóis era usado para acender o fogo dos fogões a lenha, ou a carvão – como era o caso lá de casa. E, dona Edite nos ensina, é preciso saber usar corretamente o objeto, caso se queira obter a ventilação em cem por cento do que o instrumento é capaz de oferecer. Se pegar o abanador um pouco mais acima ou abaixo da alça de mão em formato de cruz que lhe serve de base, muda o vento. E o vento, a gente intui diante de um abanador rústico, é metade do valor desta vida. Obrigado pelas lições, Dona Edite: compramos dois, cada menino levou um, saíram se abanando pelos becos e ruas quentes do centro histórico de Lençóis. No final das férias, os abanadores têm destino certo: um vai para Vó Bel se aliviar quando o Pitimbu, em Natal, ficar insuportavelmente quente. E o outro vai para Vó Bastiana recordar os tempos em que gerenciava o fogão a carvão lá de nossa velha casa – fogareiro de alvenaria  incrustado num canto da cozinha, aquecido e ventilado na medida certa.

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