quarta-feira, 11 de julho de 2012

Antonioni, sujeito e objeto


Entre as sequencias mais intrigantes do cinema, está a que encerra o filme "Blow up", de Michelangelo Antonioni, uma referência tão recorrente quando se fala sobre a forma narrativa que a sétima arte adquiriu quando embalada à européia que dispensa qualquer apresentação. Ocorre que, por mais tomado à mão armada sempre que se precisa responder, na velocidade de um assalto, o que diferencia a cinematografia típica norte-americana daquela feita do outro lado do Atlântico, certos elementos de "Blow up" permanecem abertos à formulação de que assiste ao filme. 

A cena final, do jogo de tênis sem bola, é o momento máximo da expressão dessa impossibilidade onde cabem todas as possibilidades interpretativas. Assim como acontece, para citar outro exemplo igualmente referente, no final de "2001 - Uma odisséia no espaço". Talvez por isso, um e outro estejam entre aqueles filmes a que a gente, volta e meia, acaba se curvando quando está numa locadora de video sem saber exatamente o que procura. Na dúvida, vamos com algo clássico mas intrigante: garantia de qualidade mas também de desconcerto. Algo com que alimentar aquele órgão interno semelhante, de alguma forma, ao orgânico estômago, mas que é de fato a inorgânica inteligência.

Foi o que me aconteceu outro dia: e lá fui eu, assistir em colheradas atentas como quem degusta um prato raro, a cada momentinho do filme a um só tempo pop e conceitual de Antonioni. Sem perseguir exatamente as chaves das charadas que o filme contém, entretido na verdade apenas com a camada até superficial da obsessão do fotógrafo do filme pelas pistas de algo estranho que uma imagem casual capturada por ele pode conter, a gente vai chegando - desde que o olho esteja aberto e desprevenido, pronto para processar precisamente o que o danado do Antonioni oferece parcimoniosamente - ao, eita palavrinha perigosa, cerne da questão. E eis que, quando chega a cena final, a clássica partida de tênis disputada no nível da mímica por um grupo de artistas de rua, faz-se a luz. O bóston de Higgs do filme explode na sua mente e fica tudo muito claro.

Outra pessoa, como o fenômeno da percepção varia tanto quando a variedade da raça (humana, não se precipite), pode chegar a prognóstico bem diferente - e igualmente correto e aplicável. Mas o meu foi este: o tempo todo o "Blow up" de Antonioni está falando sobre a busca de um tipo extramente radical de liberdade. Radical não no sentido perigoso, politicamente extremista, humanamente marginal. Não: no sentido elementar mesmo. Assim: o cara é um fotógrafo famoso, caro, tarimbado, célebre, pop, desejado e admirado. Alguém que por princípio parece poder tudo. Ele é a referência, o tampa de crush, o bam-bam-bam. Ocorre que quando mais alto é o lugar onde ele é colocado, menos liberdade tem: precisa corresponder às expectativas em volta e o resultado dessa exigência é um profundo tédio. Sim, o tédio do filme de Antonioni não é um cacoete audiovisual, uma mania gratuita, um jeito de corpo bacaninha do cinema da época. É, na verdade, um elemento muito essencial à situação do seu personagem.

Em busca da liberdade perdida para a celebridade que não o larga nunca, o fotógrafo sai por aí fotografando ao léu, exercitando seu ofício com a informalidade que a fama veta, não permite. Nisso, captura a imagem que passa a lhe perseguir, com o indício de um crime. O que aconteceu, para além do gancho, vá lá, policial? A liberdade extrema, para ele, é o ato de fotografar sem se preocupar com o objeto - motivo de suas prisões circunstanciais, pois está sempre preso à fotografia de moda, de revista, da estampa da época, do retrato contratual. Ao fotografar como um amador num parque, ele tem a ilusão de que, fugindo do objeto, alcançará uma plenidade livre das circunstâncias. Ledo engano: o que ele capta é algo objetivamente indescartável - um assassinato. 

Resultado da equação: não há como atingir a liberdade total de viver ignorando o objeto (noutras palavras, as circunstâncias). Ele, o objeto, sempre vai arranjar uma maneira de se prender a um sujeito, no caso o fotógrafo. Daí a ilusão final da última cena: um jogo de tênis feito por um grupo de artistas de rua (sujeitos de um exercício artístico que é também uma forma de buscar a suprema e impossível liberdade) sem a existência física da bola (o objeto que "trai" a ocorrência da realidade e suas circunstâncias). Só assim, num ritual inscrito no suporte artístico, o fotógrafo poderia fugir da responsabilidade direta que a ausência de objeto permite. Uma vez que o objeto apareça, a busca daquela liberdade só poder ser feita com o correspondente grau de responsabildade a ela atrelada: o fotógrafo, obcecado, desvendou o crime que sua imagem denunciava - imagem feita numa tentativa de fuga da esterilidade existencial de seu estúdio caro e blasé.

Liberdade e responsabilidade, sujeito e objeto, são esses os pontos cardeais do ensaio narrativo que "Blow up" oferece a quem o assiste. E com que ritmo, abordagem e sensibilidade audiovisual isso é feito, construído, milimetricamente elaborado é outro prazer à disposição de quem, como fiz outro dia, volta e meia retorna ao filme.  

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