quinta-feira, 10 de março de 2011

Subprodutos da antifolia


Não foi um anticarnaval planejado como estratégia abertamente hostil a qualquer forma de folia. Mas se o tivesse sido, quanta exatidão. Dos restos noturnos da sexta-feira até os vestígios matinais da quarta-feira de cinzas, conseguimos a proeza – quem mora ou conhece a rotina de Brasília vai me entender melhor – de não viajar e, mais que isso, praticamente não sair de casa. Temporada doméstica, reclusão domiciliar absoluta, abraços em chinelos, afagos em livros, pé no tapete, braço no sofá, DVD a postos e uma espionada no janelão para contemplar a cidade dormitando.

Houve tempo suficiente para maratonas não programadas de filmes, sala de clássicas e novas imagens. Um doc ligeiro sobre Van Gogh by Biography Channel no miniDVD que se faz de livro quando usado na horizontal da cama; rever as imagens e a dramaturgia contida de “Merry Christmas, Mr. Lawrence”, com a performance marcante de David Bowie, Ryuichi Sakamoto e Tom Conti, soldados à frente de uma tropa de atores-espadachins em cena. Rever também, após décadas, o chiclete primordial de Ridley Scott que sempre será o primeiro “Alien”. E olhar de novo, ainda e mais uma vez, as dissimulações evolutivas daquele que talvez ainda acabe sendo considerado o melhor filme de Woody Allen, “Match Point” (no que ficará pau a pau com “Crimes e pecados”, outro registro pra lá de amargo do cineasta). Até o “Incrível Hulk” dançou frevo aqui em casa nesses quatro dias, graças ao valioso acervo da Loc Video da 104 Sul, aquele tesouro de nostalgia exposta como os nervos da saudade.

Ouviu-se música, e como. E não foi só em CD, mas em LPs negros como a musa da canção que Gal Costa entre nós batizou. Negros amores jamais relançados em formato digital. Como o “Bazar Brasileiro” que Moraes Moreira despejou no mercado do disco ali no comecinho dos anos 80, empacotando futuros clássicos como “Meninas do Brasil”, “Forro do ABC”, “Pessoal do alô”, “Tapioca de Olinda” e, a preferida entre as preferidas da nova ouvinte Cecília, “Grito de Guerra” – uma festa de tambores indígenas mesclada com marcha carnavalesca que abre o disco e nunca foi justamente reconhecida na extensão máxima de sua qualidade. É aquela que diz: “E vem comer, caruru e acará/ e vem beber, marili e aluá...”


Grito de guerra” não existe em CD. Nem na mais oportunista e muito menos na mais caprichada das coletâneas. Moreira não a gravou no Acústico que fez para a MTV. O mesmo se pode dizer do imortal “Cinco Sentidos” de Alceu Valença, LP lançado um pouquinho depois e desde então, após o sucesso habitual, sumido para sempre das lojas de discos que porventura ainda restaram. É aquele disco que traz na capa um Alceu cabeludão mascando uma flor amarela. Grande, imenso, abarcante disco que eu tenho aqui em casa graças às minhas buscas incansáveis e viciantes à (que não feche nunca) Musical Center, loja de velhas pérolas sonoras em formatos variados que funciona na comercial da 215 Norte. Estão nos “Cinco Sentidos” de Alceu, além da faixa título, entre outras: “Quando eu olho para o mar”, “Cabelo no pente” (esta ainda se acha, isolada e triste, em coletâneas), “Fé na perua” e “Arreio de Prata”. Quer mais? “Porto da saudade” (Faz tanto tempo, tempo é rua Soledade / leio a saudade quando escrevo solidão”).

Nos momentos em que houve folia, bateu aquela vontade de voltar correndo pra casa. Mas a gente acredita, compra créditos e se liga enquanto dá. Assim é que saímos para ver o Galinho de Brasília onde ano passado tanto nos divertimos na companhia de Carlos Magno, Rosa, Pedro e Luís. Desta vez, sem um bloco assim de conformação amigável e familiar, estava menos euforizante. Ou talvez porque a sintonia este ano fosse outra mesmo, ou ainda porque o canto da orquestra do Galinho a cada ano fica mais impotente diante da multidão de desgarrados brasilienses que ele tem por obrigação, coitado, arrastar. De qualquer maneira, ainda se saracoteou um bocadinho entre o Carpe Diem e a não-esquina mais próxima.



Na terça, aproveitamos o fato de agora sermos vizinhança e nos desabamos rumo ao Terraço Shopping, aqui mesmo no Sudoeste, para o precocemente tradicional baile infantil que, mal foi criado, virou um deus nos acuda de tanta gente, tanto menino, tamanha arruaça infanto e juvenil. E era, antes do baile, um mar de carros navegando à deriva sobre gramados comumente proibidos aos seres de quatro pneus. Espantados, constatamos que meia Brasília agora fica aqui no Carnaval e corre para o baile infantil do Terraço como ocidentais perdidos no deserto do Saara acossados pelos bombardeios de Kadafi na vizinha Líbia. Mas, novamente, saracoteou-se entre chuvas torrenciais de confete e disparos certeiros de espuma branca. E quando bateu a vontade de voltar pra casa, foi um pulo só, muito condizente com o espírito geral da folia domesticada pelos feitores do conforto de repente tão prezado. Feriadão à parte, deve ser coisa da idade.



De maneira que o tempo foi passando, o quadriculado desenho do feriado se consumindo e aqui estamos nós, às voltas com a modorrenta tarefa de reconstruir a rotina de trabalho, mas certamente menos cansados e mais arejados do que quando no período ingressamos. Parece que, para chegar a tal resultado, o fundamental mesmo foi aquele não planejar nada, não procurar o que seja, não marcar compromisso. Ficar em casa é um religião. Pacifica o mundo, rumoreja as atribulações. Não se trata de fundamentalismo contra os males da rua que, sabe-se, é alimento certo quanto a ocasião pede outro cardápio, mas tem seu antiapelo calado e certeiro. Ainda que lá fora, mesmo em Brasília, seja de fato carnaval.

A Hamaca Multimídia facilita sua vida:
Para ouvir Moraes cantando "Grito de guerra", clique aqui.
Para ouvir Alceu cantando "Quando olho para o mar" clique aqui.
Para assistir ao trailler de "Merry Christmas Mr. Lawrence" clique aqui.
Para ler mais sobre Ridley Scott na Wikipedia, clique aqui.

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