segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O filme, a cidade e a beleza


É bem provável que você nem lembre – eu não me recordava – mas há em meio ao filme “Hannan e suas irmãs”, aquele que talvez seja o mais, vá lá, otimista, filme de Woody Allen (ou, por outra, o único com tal característica, divinamente cultivada ainda que a contragosto, ou por isso mesmo), uma cena, digamos, urbana, das mais sublimes. É provável que o leitor, cansado dos nossos cânceres urbanos supurantes de problemas, não veja harmonia entre a qualidade do que é sublime e o caráter do que é urbano. Pois por isso mesmo a cena, ainda que pequena e meramente ilustrativa dentro da situação geral esboçada pelo filme, torna-se ainda mais saborosamente poética, contemplativa e, assim mesmo, urbanamente sublime.

Sam Waterston, que você lembra mais de ter visto como aquele jornalista americano em “Os Gritos do Silêncio”, está sendo disputadaço por duas encalhadas tipicamente woodyalleanas. E, nem um pouco bobo, resolve, muito na manha, tirar proveito de ambas. Convida as moças – Carrie Fisher, ela mesma, a confiante ex-rainha Leia da série “Guerra nas Estrelas”, e sua concorrente meio gaguejante Dianne Wiest – para um passeio por Nova York. A explicação – ou a desculpa – é simples: ele é arquiteto e quer mostrar para elas aqueles que considera os mais belos prédios da cidade. Sua lista de preferidos, como essas que a gente faz na internet, mas ao vivo, a bordo de um bólido feito para atrair a simpatia feminina que já está em estado bem adiantado de manifestação.

Com toda essa cafajestice assumida e semi-explicitada, a cena é bonita como o quê: Sam finge que tudo não passa de uma expedição cultural, as moças fazem de conta que estão interessadas apenas na arquitetura novaiorquina e nós, assistindo ao filme, participamos do tal passeio junto com o trio e vemos belos prédios, divinas arquiteturas, singulares idéias de habitação, marcantes elementos da paisagem de uma cidade – e ainda temos até uma amostra de um projeto que é o oposto de tudo isso. Em resumo, somos os verdadeiros interessados na tal aula ao vivo – seus autênticos beneficiários. A sequência toda, sem que o diretor passe sequer perto dela (ele também está neste filme, disso você deve lembrar, é justo o ex-marido da tal Hannan do título, que vem a ser Mia Farrow mas deixa pra lá), é uma tocante maneira de WA mostrar para seus fãs o quanto cultiva a cidade onde vive, protagoniza seus pequenos escândalos e realiza seus singulares filmes (embora, de uns tempos pra cá, é verdade, tenha se bandeado pra outras terras).

É tão singela, instigante e ao mesmo tempo verdadeira a cena – ao final, o arquiteto vai, como se diz hoje, “pegar” as duas passageiras, claro – que dá vontade de a gente, aqui do lado de cá da tela, tentar redescobrir a nossa própria cidade. Não que elas sejam alguma NY – que, claro, também deve ter lá seus defeitos e suas feiúras lá onde as lentes do cineasta não chegam – mas é que todo aglomerado urbano minimamente digno de usar o nome de cidade deve ter, como no filme, sua lista bem concreta de prédios mais bonitos – ou ao menos de lugares interessantes, se o apreciador não faz questão de haver uma arquitetura propriamente dita.

Como o Parque da Cidade em fim de tarde aqui em Brasília, ali na beira do lago artificial que também anda, coitado, bem esquecido pelos poderes públicos. Ou como , pra muita gente, o poente no restaurante às margens do estuário do Potengi, rampa das Rocas em Natal. E, se o caso é prédio mesmo, construção projetada e construída a partir de um desenho poderoso feito pelo bicho-homem em momento de busca de transcendência ao caráter também animal da espécie, é questão de buscá-los nas ruas, praças, espaços públicos. Em Natal, por exemplo, agrada à visão a contemplação de um velho palacete restaurado bem no meio da ladeira da avenida Rio Branco – é um pequeno adorno histórico que até um tempinho atrás estava se acabando em ruínas e agora brinda a via pública onde se pendura tanta informalidade suja com um pouco de limpeza e claridade. Poesia em cores vivas no horizonte turvo e calourento do centro.

Veja o filme, leia o livro, ouça a trilha sonora e depois pegue o carro, o ônibus, a moto ou o que for e saia por aí mostrando para os amigos, os filhos, os pais, os netos, os desconhecidos, como se fora um louco-são, os pedaços da urbanidade que mais o agradam. Quem sabe o deus das cidades não lhe ouve e providencia uma reforma, protege aqueles prédios e monumentos que estão à mercê do piche, do abandono – ou mesmo da Prefeitura, como acontece em pelo menos uma das cidades citadas nesse texto aqui.

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