terça-feira, 23 de novembro de 2010

Cinema de outras terras


Quem, como eu, aprendeu desde menino que entrar numa sala de cinema é entregar olhos, coração e mente a uma experiência de entretenimento - naturalmente, com a esperança de que tal entretenimento seja minimamente inteligente - ainda sai desta mesma sala meio tonto quanto assiste a algo que vai além desse propósito -ou fica aquém, conforme a perspetiva pela qual se veja o problema. Eu falei "problema"? Um filme não deveria ser um "problema" - antes, uma solução para a fome de imagem, informação, envolvimento, distração, conhecimento. Mas filmes como "Terra Vermelha" são uma amostra de danações expostas que contrariam tudo o que vem sendo dito desde a primeira palavra desta conversa aqui - precisamente, "quem".

E quem, como eu, ainda estranha filmes como "Terra Vermelha", pode-se considerar um feliz espectador em formação. "Terra Vermelha" é aquele tipo de ficção com o maior ar de documentário disfarçado, de tão real e de tão intenso na sua busca de retratar em filme uma tal realidade. No caso, a realidade dos índios do Mato Grosso do Sul cuja sobrevivência cultural e econômica - sobretudo econômica - está confinada a áreas de reserva onde a existência deles simplesmente não cabe. E no rastro dessa espécie particular e sinistra de segregação, vem toda uma decadência que aos olhos dos brancos, ao invés de denunciar a natureza do problema, termina por reafirmar o mito de que o índio, beberrâo e errático, é o responsável pela sua própria danação. O filme faz a antropologia dessa tragédia rural e urbana sem abrir mão de certo distanciamento e determinada dureza de olhar. Quando o espectador ahbituado ao entretenimento - ou mesmo ao cinema lírico de arte, mas sempre narrativo - se defronta com esse tipo de cinema, não há como o estômago não revirar como deve ocorrer com as entranhas de um índio faminto.

"Terra Vermelha" bebe no mesmo balcão sujo de bar onde se escoram, qual bebuns perdidos mas visionários, filmes como "Baixio das Bestas" e "Amarelo Manga" - ambos, salvo engano, do pernabucano Cláudio Assis. A pequena diferença que houver, se existir, está no fato de Cláúdio Assis nutrir, pelo menos é o que se sente diante de seus filmes, certo culto até meio fetichista pelas misérias que exibe, enquanto a triste condição dos índios suicidas de "Terra Vermelha" soa mais como o lamento de quem vê aquilo com um choro preso na garganta- sujeito a se impressionar, mas já sem capacidade de de se comover. Se Assis só enxerga palperização - inclusive cultural - quando está diante da miséria dos mestres de maracatus do agreste pernambucano, o diretor de "Terra Vermelha" (Marco Bechis) também é um observador inflexível frente à tragédia do índio sul-matogrossense. Mas ele acrescenta a esse anti-receituário visual uma carga de dignidade derradeira - e inexpugnável. Vide a cena mais famosa de seu filme, aquela em que o índio velho mastiga e engole um punhado de terra diante do fazendeiro que quisera provar sua ligação telúrica com o lugar apenas segurando um torrão de punho erguido no ar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...