quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Cinema de outras terras (2)


A gente persegue os filmes ou são eles que não saem dos cascos da gente? Os temas que a vida propõe, em forma de narrativas, livros, imagens, programas de tevê, cinema e alhures são resultado de alguma conspiração dirigida individualmente para cada um de nós ou tudo não passa de uma vazia coincidência? Sei não, só sei que logo depois de escrever aqui aquelas bestagens sobre o filme "Terra Vermelha", fui assistir a "Brincando nos campos do senhor", um anti-épico oitentista com a assinatura sempre respeitável do argentino-brasileiro Hector Babenco, e parece que é o assunto que me persegue, se não for o caso de eu mesmo estar no rastro dele mas sem me dar conta dessa procura. E vêm as distinções, com ou sem o circunflexo daquela tal reforma: "Brincando" reforça um pouco o que eu dizia na conversa anterior, sobre filmes que de tão afiados na sua teimosa reconstrução de uma realidade miserável tornam-se eles mesmos qual faca afiada que é bela quando refletida à luz da lua mas intimida quando se pensa no risco de se trocar o olhar contemplativo pelo tato que ocasiona corte, sangue, dor.

Ficou barroco demais, já entendi e já me explico. "Brincando" é um filme que, por mais exato que seja na exposição da realidade amazônica-indígena da época, mostrando os riscos da conexão selvagens-padres-e-evangélicos-fundamentalistas-americanos-cometendo-equívocos-quando-pensam-estar-salvando-uma-espéce, ainda é uma produção enquadrada na moldura do cinema convencional-narrativo-ocidental-clássico. E "Terra Vermelha", talvez por ser um filme, no bom sentido, nacional, não sofre daquela amarra que por mais sutil que seja é sempre como uma corda prendendo o filme de Babendo no pé da mesa da indústria audiovisual da banca de Tio Sam. "Terra", não: pode se dar ao luxo de ser o fracasso de público que deve ter sido mesmo, não precisa se imolar diante do fato de ser visto em poucas e raras salas, não raro apenas em sessões de festivais de cinema onde brilham mais as pérolas menos acarinhadas pelos esquemas promocionais de costume (embora isso também seja uma espécie de fetiche alimentado por certo segmento do público e independente da qualidade do filme, mas esse já é outro papo que não cabe aqui).

Enfim: enquanto "Brincando" chega até a enternecer ao mostrar a fragilidade de uma comunidade indígena semi-isolada na floresta amazônica, "Terra" será sempre aquele chute em testículos desavisados para com a realidade suicida do que restou das nações que habitavam o território do atual Mato Grosso do Sul. Entre um e outro, há um rio caudaloso de gradações. Numa margem, por maior que seja a dor do Tom Bereger desprovido de identidade e ansioso em se mesclar aos silvícolas tupiniquins, sempre será um pouco Hollywood. Na outra, a lama local levou qualquer resto da estética cinemão e deixou apenas o limo de nossa própria decadência antropológica. Certo tipo de espectador do primeiro (que sairá, ainda que triste, narrativamente satisfeito da sala de exibição) poderá dar as costas ao segundo (do qual, muito provavelmente, sairia antes do final da projeção).

Uma última nota que o filme, revisto em tempo deslocado e posterior, provoca é aquela referente ao tema do fundamentalismo religioso. Vendo, lendo e ouvindo sobre aquilo em que os EUA estão se transformando à sombra dos tea parties da vida, não deixa de ser curioso acompanhar a aventura tão ingênua quanto criminosa do grupo de missionários em busca de conquistar tribos remotas da floresta brasileira. Rever tempos depois um filme marcado por outra década quase sempre traz essa impressão de pulga atrás da orelha, comentando ironias, com pequenas risadas, chistes desperdiçados. "Brincando nos campos do senhor", que continua bem poético e transcendente na cena em que o piloto Bereger quase joga seu teco-teco num bloco maçiço de montanha na floresta, hoje soa como uma amarga premonição de impensável futuro na antropologia não dos povos da floresta, mas do americano médio que quer despachar Obama com a mesma fúrica com que apoiou Bush, embora todo mundo tenha esquecido disso.

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