terça-feira, 13 de julho de 2010

A falsa investigação de Stephen King


"Christine", diferente do que o nome sugere, era um carro. Mas "Carrie" é uma garota mesmo. As duas são criaturas de Stephen King, cuja imaginação é capaz de fazer um monossilábico "se" transformar-se em narrativas com um poder de imersão que faz o leitor esquecer de si mesmo - e seus problemas eventuais, o que vem bem a calhar. Funciona assim: "e se" um velho carro tivesse o poder de tomar posse do alma de um adolescente desajeitado, fazendo dele um seguro, mas perigoso, agente de sua própria fúria? Isso é "Christine", um clássico para quem não tem vergonha de beber o leitinho estragado da cultura pop mais estandartizada. "E se" aquela adolescente desajeitada de quem a turma toda tira o maior sarro descobrisse que tem poderes telecinéticos capazes de mover a seu bel prazer desde um palito de fósforo até um carro em movimento, o que faz dela uma assassina vingativa em ponto de bala?

Isso tudo é porque, nas intempéries da vida, eu andava atrás de uma leitura evasiva - mais uma - para atravessar o temporal. E lembrei daquela nova edição de "Carrie, a estranha", primeiro livro de Stephen King - e com o qual ele conseguiu sustentar dignamente esposa e filhos - que virou um filme não menos pop nas mãos do sanguinário chique Brian de Palma. Fechei os olhos e fui a ele, pronto para afundar na narrativa das mil peripécias aterrorizantes que tal garota haveria de desencadear. O resultado é que encontrei um livro de estilo inesperado, feito em forma de fragmentos de relatórios misturados a narrativas tradicionais, com colagens de trechos de falsas resportagens, enxertos de interrogatórios entremeando as partes.

Enfim: no teor, "Carrie" é um estudo ficcional sobre os poderes retraídos - ou não - da adolescência vivida em bandos; um ensaio narrativo sobre os efeitos e a mecânica da segregação das high schools. Já na forma, é um inteligente e divertido "falso documentário" - gênero em moda no cinema de hoje - sobre a ocorrência de fenômenos paranormais protagonizados por uma adolescente mal ajustada numa cidadezinha do estado do Maine, EUA. Borges é muito pra comparação - mas a gente tem que ter o desprendimento de dizer que King, este legítimo produto da literatura mais mercantil (atenção que isso, embora não pareça, é um elogio), realiza aquilo que o cego mais cultuado do mundo literário preconizou.

Porque "Carrie" é praticamente todo feito com base em relatórios recriados, documentos imaginários, testemunhos factíveis, livros citados - inclusive com o charme das páginas etc etc. Labirinto narrativo vulgar, mas eficiente - se você destinar ao descompromisso da leitura o mesmo empenho que reserva ao altar da santidades literárias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...