Sobre um clássico europeu, uma sina natalense
“Carla Lescaut”, o romance de Cefas Carvalho que eu
trouxe de Natal num pacote de livros adquiridos nas férias deste início de ano,
é um tobogã narrativo, uma festa de ganchos, uma vertigem sem freios. Tudo
escorre, desliza, afunda na história do publicitário que aos poucos vai
atirando à sarjeta mais próxima todos os valiosos atributos do bom mocismo. A graça
é vivenciar essa doce-amarga imersão, esse revestimento em lixo de um almofadinha
envenenado pela luxúria. É folhetim europeu século dezoito refeito para a Natal
de hoje em velocidade de vôo charter. E é mesmo: um livro-citação que como tal
se apresenta logo de antemão, ainda que nos últimos capítulos. E, feito isso,
sapeca: curta a referência, divirta-se com as analogias.
E a fruição vem, mesmo que o leitor, como eu, este
contumaz Leitor Bagunçado, não tenha lido o original em questão – “Manon
Lescaut”, um clássico da literatura francesa. Independente desse
(des)conhecimento, a graça se sustenta, o jorro se mantém, o jogo evolui de
capítulo em capítulo, de uma praça em ruínas na Zona Norte às mesas padronizadas
do Natal Shopping – com aquela assepsia infértil que o autor fuça ao cruzar com
a burguesia mais estabelecida da capital de Poti, ela mesma um pano de fundo e tanto dessa história.
A flor desse esgoto iluminado pela lua potiguar é Carla,
a personificação de um segmento feminino da capital e do interior que, a
despeito de toda lama, irradia legítima sedução – ao contrário do sem-sabor de
vastas camadas sociais da cidade sem máculas. Carla Lescaut, uma neo-Geni
nordestina, filha temporã de Maria Boa com um turista nórdico não identificado, lembra desde as primeiras linhas outra figura clássica daqueles
mesmos folhetins canônicos europeus– a cigana Carmem, a virar a cabeça do tonto e certinho José. O cheiro de sangue ronda o leitor desde esse
início, mas a sombra de Nelson Rodrigues – não exatamente nas peças, mas nos
folhetins que assinou como Suzana Flag – será detida antes que se consuma a tragédia.
Prevalece o fascínio em detrimento da morte. No máximo, certa decadência – o que
não é pouco. E assim romanceada, “Carla Lescaut” diz muito sobre certos fenômenos
sociais natalenses, como a prostituição recorrente desde os tempos do trampolim da vitória.
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