quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Chuvas, litorais, telhados e praias



Amanhece um dia de chuva sobre o Sudoeste organizado que me arremessa feito nuvem de verão diretamente sobre os telhados curvos da praia de Pipa. Não agora, mas lá pelos idos de 1993-94, quando fomos todos, eu, Rejane, os cunhados Sandra e Novo com Raísa criança e Rafael ainda bebê, meu pai e minha mãe passar um fim de semana na pousada de Ana Anita, a “Praiana” que fica naquela rua onde durante anos a areia natural venceu o calçamento oficial. 


Houve sol (fotos abaixo), mas houve também muita chuva, razão da nostalgia disparada pelo gatilho da manhã em branco. Não tinha importância, como não tem agora, já que o que contava então e conta aqui é a emergência da umidade litorânea. Só quem veio do sertão habitualmente seco – mas extremamente verde e multicor quando as chuvas da infância vinham – pode entender a força dessas águas. Às vezes só o tempo nublado já basta para anunciar sua iminente presença, aproximação amiga. 


À tarde, víamos a chuva cair como um cobertor macio sobre os telhados de Pipa, retocando as cores daqueles tetos, muitos deles de casas ainda humildes hoje derrubadas para dar lugar aos novos empreendimentos. A praia toda, o horizonte inteiro que um quarto tipo família no andar superior da pousada oferecia à vista, ganhava uma mão de pintura natural que fazia ainda mais luminosa a paisagem em volta. Lembro da fachada de um antigo bar, o Hendrix, e da linha do mar com um verde-azul mais saturado boiando sobre os telhados, caixas d’água, murinhos e folhas de coqueiro. E a sinfonia dos pingos regendo tudo.  


Essa umidade entra pelo corpo da pessoa, faz algo como uma transfusão natural do líquido que domina grande parte do nosso organismo. Quem já nasceu em meio a ela pode não perceber, mas os esqueletos sertanejos como eu a experimentam como um milagre não registrado nos cartórios vaticanos. É exatamente o mesmo tipo de sensação que tinham quando, adolescente, passava temporadas na casa do amigo Ítalo em Recife, e também mais tarde quando atravessei todo o ano de 1984 cursando Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco: bastava o ônibus da Viação Progresso, vindo de Campina Grande, aproximar-se de Goiana e aquele verde da costa já começava a operar suas químicas na minha ressecada pessoa. A Zona da Mata sempre terá algo de paraíso perdido ou inalcançável - e o nômade Severino do poema de João Cabral é prova disso.

Até hoje há uma planta que me evoca essa epifania de geografia humana. Queria ser minimamente conhecedor da botânica para indicar o nome aqui: tudo o que posso dizer é que ela cheira a umidade do mar e felizmente está em todo lugar, como se fosse uma embaixada da costa onde menos se espera. Quando isso acontece, eu e Rejane quase disputamos para ver quem detecta primeiro: “Aquela planta...” 

Estrada de Trancoso 
Anos mais tarde o prazer da imersão neste mundo-litoral se faria ainda mais forte. Foi quando visitei a Costa do Cacau e espalhei restos do meu queixo caído nas estradas deste litoral baiano ao deparar com a autêntica paisagem descritas nos romances de Jorge Amado - e, mais impressionante ainda, com pessoa que pareciam ter pulado dos livros diretamente à realidade. 

Não é que a gente duvide dos autores que nos habituaram à dádiva da leitura: é que é muito forte - ao menos para corações desprevenidos, como o meu - dar de cara na estrada velha de Trancoso com uma baianinha cheirosa e adornada que por todos os efeitos lembra mais um personagem caprichosamente composto do que alguém de verdade. O mesmo se pode dizer de um velho tangendo bichos no acostamento de uma BR próxima a Itacaré - assim como de todas as crianças que habitam essa comunidade famosa pelos costões de coqueiros e rochas junto ao mar (registros dessa viagem nas fotos abaixo)




Toda essa peroração pessoal em torno de chuvas, litorais, telhados e praias o senhor leitor encontra em termos muito mais apropriados em Gilberto Freyre, fonte evidentemente muito mais autorizada. Sugiro que vá direto a “Nordeste”, o livro do velho sociólogo onde achei, em milimétricos detalhes e calorosas interpretações – o melhor de Gilberto é que ele escreve sempre com paixão – as explicações para esse meu apego nostálgico a essas coisas do litoral. 


O que o morador do casarão de Apipucos me disse, como quem assobia uma canção de Caimmy ao pé do ouvido, foi que o segredo deste fascínio está na doçura muito própria dos tabuleiros do litoral nordestino. E, embora se apoie nisso, a conexão com o cultivo da cana-de-açúcar vai além de uma abordagem meramente econômica.

Mel de engenho

"A cana-de-açúcar é uma planta profundamente ligada à água, ao contrário da planta que foi sua concorrente na ocupação do espaço nordestino, o algodão. Daí a separação entre as áreas de cana e as de algodão, entre o Nordeste úmido e o Nordeste seco", antecipa Manoel Correia de Andrade, professor da UFPE, na apresentação do livro de Freyre. 

Ao que o autor acrescenta, depois de reclamar da visão de um Nordeste unificado então vigente - hoje, bem menos, graças à feliz intervenção dos produtores de cultura desta nossa variada região: "Esse Nordeste de figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco é apenas um lado do Nordeste. Mais velho que ele é o Nordeste de árvores gordas, de sombras profundas, de bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredondada quase em sanchos-panças pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e sempre o mesmo, pela opilação, pela aguardente, pela garapa de cana, pelo feijão de coco, pelos vermes, pela erisipela, pelo ócio, pelas doenças que fazem a pessoa inchar, pelo próprio mal de comer terra."

Tem mais: "Um Nordeste onde nunca deixa de haver uma mancha de água: um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa. Onde a água faz da terra mais mole o que quer: inventa ilhas, desmancha istmos e cabos, altera a seu gosto a geografia convencional dos compêndios."

E segue o livro com sua antropologia poética que abarca tanto o cheiro de chuva quanto as pestilências que o litoral, como o sertão, também tem. Doce ciência a embrulhar com papel de pensamento a matéria que os dias de chuva nos entregam em forma de saudade.

domingo, 13 de outubro de 2013

Na contracapa do verão



O título remete a um clássico filme oriental e parece apontar, uma vez reaproveitado no livro, para uma trama meio faroeste brazuca. Mas não é nada disso e mais do que a barba, o que temos no livro do momento escrito por Daniel Galera é uma alma empapada em sangue. Matéria escura, viscosa e repleta de componentes que reforçam os infartos intermitentes desta alma jovem que o livro abre e investiga como quem faz a autópsia de um ser vivo vitimado todos os dias pelo câncer da angústia.

Estamos em Garopaba, sítio de verão mais que conhecido do litoral de Santa Catarina, e transitamos entre lojinhas de estação, bares nem sempre abertos, pequenos postos de saúde, mercadinhos, gente em trânsito, sem futuro definido ou maiores amarras. Neste cenário dá-se a anti-aventura absoluta de um típico turrão - ainda que ele tenha, aparentemente, menos de 30; faixa etária em que este modo de ser no mundo ainda não se cristalizou. "Barba ensopada de sangue" é o livro que enumera as antiperipécias de um turrão em formação: o cara naquela etapa da vida em que começa a colecionar o amargor de dados momentos; quando a personalidade vai fazendo curvas mais derrapáveis; virando a esquina pisando em sandálias que começam a ficar gastas e a pedir substituição. Mas ele, como bom turrão em processo de sedimentação, segue caminhando indiferente ao estado de si próprio e do mundo em volta. Há, em paralelo, a clássica investigação sobre o papel do pai, aqui reelaborado na figura de um avô desaparecido - e quase mitificado; o que não deixa de ser um ingrediente e tanto no difícil preparo que resulta na figura de um turrão juramentado.

Tudo transcorre em aprazível velocidade de cruzeiro literário, a formação do turrão e o argumento narrativo reforçado de que este tipo de pessoa sempre terá suas razões - seu troféu e ao mesmo tempo sua ruína. Há um ritmo e um fluxo constante de fatos e não-fatos, de pequenos incidentes e grandes manifestações habilmente sugeridas - como a aversão da comunidade a este jovem e sua ascendência - , compondo este recorte na vida de um atleta  gaúcho metido na contracapa da aldeia de verão, já que tudo se passa num inverno anticlimático por excelência. Se fosse um Harold Robins ou similar, Daniel Galera poderia ter dado a este livro o título folhetinesco de "O outro lado do feriadão". E escrito nas orelhas para os leitores menos pacientes: uma aventura praieira sobre solidão, família, mitos urbanos e a necessidade de isolamento que todos temos. Seria tudo verdade, cada um dos itens prometidos. Mas a abordagem, que em muitos momentos me lembrou o livro do amigo Carlos de Souza - "Crônica da banalidade", editado em Natal em 1988 - é que ensopa de tempero literário diverso essa barba de narrativas desfiadas em possibilidades, chaves e acasos. Definitivamente, este é um romance que não foi escrito para ser lido à beira mar durante as férias.

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