Leitor
Bagunçado acabou de atravessar as mil e uma perorações humor-ateísticas de “Caim”,
um dos últimos Saramagos, onde o portuga bom de letra faz gato, sapato e
acessório de couro do deus pré-histório do velho testamento que, ironias
atemporais, não poucas vezes tem incomodado com suas persplexidades as modernas
mentes humanas atuais. O livro é um chiste de responsa sobre eventos como noés,
jericós, sodomas e abraãos, brianizando (“A Vida de Bryan”, o filme) a relação
entre o intempestivo deus antigo e o homem de sempre, representado na figura
daquele que mata seu irmão e, crivado pelo próprio crime, torna-se prisioneiro
das dúvidas e dos questionamentos que maltratam tanto quando uma maldição de 5
mil anos. Trecho: “...é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e
acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar”. Dá-pa-tú?
Na
onomatopeia romanesca de Saramago, esse caim-caim que ladra contra o deus que o
condena a perecer no mundo entre as terras de jó e os domínios do bezerro de
ouro, entre outros sítios, é como um lamento humano conjunto dos desvalidos
encarnados contra as mãos arbitrárias do criador-primeiro. Primeiro-testamento,
que se ressalte. Mas se o deus primevo é essa mistura de quadro de
Michelangello com terror de vitalinas, é preciso dizer também que o homem ao
seu por e dispor é, embora com a duração imprecisa de caim, um sujeito da idade
do sempre. Ou por outra: nós mesmos, microfones de dúvidas que vão do que somos
ao que supostamente nos criou. Essa é a matéria, o barro de frases cadenciadas
que Saramago tão bem esmaga, com uma habilidade que, diria-se, talvez o mais crente dos escritores não alcance. Bendito ateísmo, o do de além-mar,
marido de Pilar, Nobel de nós aqui abaixo, pecadores e ignorantes da verdade
histórica, religiosa e não obstante literária. Sobretudo, literária.
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