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terça-feira, 12 de abril de 2011
Uma parábola sobre lei, coragem e imprensa
Numa cena que só à primeira vista parece inexpressiva em "O Homem que matou o Facínora", alguém que vai embarcar numa carruagem passa o dedo sobre a superfície de madeira do meio de transporte do velho oeste e remove uma respeitável camada de poeira. Essa imagem, em sua simplicidade, é como um resumo do filme inteiro. Este clássido de John Ford, com John Wayne e James Stewart, é idolatrado por dez entre dez jornalistas conscientes das debilidades de sua profissão. Trata de uma cidade sustentada por um mito. Uma grossa camada de poeira que o tempo vai assentando mais e mais sem que nenhum de seus moradores queira removar.
A poeira, no caso, é uma lenda conveniente sobre quem matou o mais temido dos bandidos da região. Um pioneiro do legalismo pouco dado às coisas da violência e da frieza emocional leva o crédito - o que, de alguma maneira, ajuda a cidade a rever seu ajuste na mudança dos tempos que é sempre um tema nos melhores westerns (você sabe, aquele momento em que um fiapo de lei, direitos e deveres começa a substituir a pistolagem pura e simples que marcou o desbravamento do oeste selvagem dos zéua lá em cima do Equador).
É por isso que "O Homem que matou o Facínora" lembra muito o nosso "O Berço do Herói", a peça de Dias Gomes que deu origem a um sucesso da televisão, a novela "Roque Santeiro". Porque por um momento - o longo instante de duração do filme - essa verdade incoveniente ameaça vir à tona. E com a revelação, suas consequências. Um momento em que se pesa conveniências, riscos, possibilidade de mudanças drásticas, reviravoltas que obrigam uma comunidade a se rever. E se ela perder o prumo diante da envergadura da própria mentira que a sustenta?
Neste entrecho, a figura de John Wayne surge como se fora uma flor de cacto no filme: ele contém toda a dor de não poder revelar o segredo à cidade - o fato de que foi ele, o homem bruto, o autor do assassinato mais esperado, e não o jornalista almofadinha a quem todos desprezavam até o momento do crime - e toda a ternura reprimida de entender tudo. É de uma superioridade o John Wayne deste filme que comove o espectador, este que priva com ele o conhecimento da verdade. Tudo inspira repulsa misturada com compaixão. Wayne vê esse panorama do alto e passa por ele com a elegância de quem não tem a menor chance de dividir com quem quer que seja sua dor. E ainda perdeu a mulher - para o jornalista almofadinha, que virou senador e acaba de retornar à cidade, dando o play para que o filme comece a desfiar esse novelo ressecado pelo tempo.
Fez algum tempo que revi o filme em DVD. Escrevo aqui a partir de notas que deixei num caderno. E lá também está escrito que este é um filme sobre formas diferentes de coragem que se juntam: o cidadão cego por sua campanha em favor da legalidade e o pistoleiro seguro de sua eficiência, Stewart e Wayne respectivamente. Dito de outra maneira: a peleja entre a realidade acachapante de uma terra sem lei e o empenho sem chances de um homem incapaz de enxergar a extensão do risco que está correndo. Mas Stewart não desiste de implantar aquela legalidade, por mais vulnerável que ela pareça - e seja - no início desse processo. E se o fará, será com a ajuda do inculto mas realista Wayne (que lembra muito o Gene Hackman de um filme que seria feito anos mais tarde, em 1988, o "Mississipi em Chamas", de Alan Parker; o correspondente a Stewart aqui é o procurador ingênuo feito por Willem Dafoe).
"Quando a lenda fica maior do que o fato, publique-se a lenda": a frase é bem conhecida e é a última anotação sobre o filme no meu caderno. Nâo sei se o filme foi sua fonte primária ou se a anotei ali apenas pela coincidência temática. Um filme a rever, sempre.
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