terça-feira, 28 de setembro de 2010

Reinações de Suassuna


A mudança de endereço, com suas mil e uma atribulações, obrigou-me a interromper a leitura, mas finalmente meus olhos cansados e sedentos estão buscando descanso e água numa velha fonte da literatura brasileira em que eu ainda não havia me aventurado. Estou lendo – estive, nos dias anteriores à mudança, e devo voltar a ele ainda esta semana – o enciclopédico, fantástico e semi-árido “Romance da Pedra do Reino”, o clássico sertanejo de Ariano Suassuna, com suas quase 800 páginas.

Mas o tamanho físico do livrão é um engano quando assusta o leitor incauto. Porque foi me decidir por ele – o livro estava há bem um ano esperando na estante, eu olhando pra ele e ele olhando pra mim sem a gente ir às vias de fato – para eu vencer, assim de primeira, as primeiras 100 páginas. Pense numa narrativa enladeirada, do tipo que você lê a primeira frase e descamba pelas cem páginas à frente como quem desce sem freios um pé de serra sem nem sentir os espinhos grudando nas perna e nas costas.

Nesse embalo, venci 200 páginas e já deu pra entender que vai ser aquele tipo de livro de que você sente falta quando acaba de ler. Nesta porção inicial, é delicioso experimentar a metalinguagem matreira e gaiata de Suassuna, que faz troça dos narradores sisudos e constrói um painel daquele país sertanejo que abarca Pernambuco-Paraíba-e-Rio Grande do Norte recorrendo à mitologia do cordel, à cavalaria medieval e à geografia física que formatou o habitante desta nação à parte. Tudo num tom de chiste e de fantasia sem limites e sem inibições, numa prosa que reafirma linha a linha a natureza e a força da literatura. Dizendo assim, parece que se trata de uma tese disfarçada de romance. Mas não é não – é uma viagem em lombo de jumento cheia de peripécias que diz muito sobre o que somos sem aborrecer nem simular grandezas inexistentes.

Somos, diz a geologia do livro, um reino inventado, à parte da monarquia européia da história oficial, composto à base de vivências e imaginações, forjado em restos do que foram outros reinos, alimentado por pedaços de lendas que, bem ou mal, aqui chegaram, à fronteira deste território que, embora componha apenas três estados do que é o Brasil convencional, comporta um continente em si de tão vasto culturalmente. Só é preciso ter olhos para ver. E quem não os tem, pode muito bem vê-lo pelos olhos de Ariano Suassuna no seu trabalho mais definitivo.

*Na barra de amostras de vídeos do YouTube, abaixo e à direita, trechos da série "A Pedra do Reino", de Luiz Fernando Carvalho.

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