domingo, 11 de março de 2018

A PRAIA OU A CRÔNICA*




Todo fim de ano por aqui ou no Facebook ou no Twitter eu faço meu apelo desesperado: gente, vamos largar tudo e correr pra praia. Nada com um bom banho de sol e de mar pra todo mundo esfriar a cabeça. Isso já tem uns três anos – porque é desse tempo pra cá que o país resolveu não perder nenhuma oportunidade para que todos, em cada local de trabalho, na rua, na escola, na igreja ou na rede social, trucidem-se mutuamente. A arma usada é uma intolerância calibre 38. A munição quem quiser pega à vontade num arsenal chamado Ignorância S.A. que tem lucrado um bocado, com uma clientela fixa.

Hoje eu vou variar: se não dá pra ir à praia, porque você é uma mistura de jornalista com servidor público que trabalha e portanto mora em Brasília, a uns mil quilômetros por baixo da praia mais próxima, não se aflija. Como diria a filha do grande filósofo Gilberto Gil (já simplificando midiaticamente tudo o que o pai, coitado, levou décadas para construir) você pode substituir a praia por...crônicas.

Porque, pense bem, analise à sua volta, indague às costuras da sua roupa (os botões já falaram demais, perderam a originalidade, convenhamos): quem neste Brasil em guerra ainda faz uma pausa no seu dia para ler uma crônica? Os jornais até que publicam – mas a pergunta volta: quem neste Brasil metido em disputas suicidas ainda interrompe uma boa briga nos comentários de um site tipo porcaria para ler um jornal? Suprimindo ainda mais a situação pra chegar ao caroço incômodo da questão: quem ainda lê?

Se não lê nada, que dirá crônicas, esse gênero que parece datado de outros tempos, onde havia outro tipo de sensibilidade, em que se cultivava outra forma de apreciação da vida, em épocas nas quais o tempo parecia transcorrer com outra velocidade? Lembro com saudade o tempo que livros de crônicas enchiam as listas dos mais vendidos nos jornais e revistas – ora era um Luiz Fernando Verissimo com as delícias de figuras como o Analista de Bagé, ora a carioquice malandro-literária do tijucano Carlos Eduardo Novaes. Até hoje, se por acaso o seu filho adolescente manifestar alguma curiosidade sobre os tempos em que o Brasil sofria com uma inflação galopante, na década de 80, não dê pra ele nenhum manual de economia – ofereça as crônicas de Novaes que contêm a alma daquele período. Nem preciso lembrar da época em que, a cada final de ano, além do LP e do especial de tevê de Roberto Carlos, todo mundo ficava ansioso pelo lançamento do novo livro – de crônicas, quase sempre – de Fernando Sabino.

Se o amigo chegou até aqui, sabe que vou deixar uma dica matadora que explica por quais motivos eu fui me lembrar dos efeitos benéficos da crônica para quem deseja suportar as agruras maléficas do Brasil atual: o mais recente livro de Clotilde Tavares, “Notícias da existência do mundo”, que acabo de prazerosamente atravessar como quem passeia por uma avenida cheia de prédios bonitos, ruas acolhedoras, jardins cheirosos, livrarias convidativas e outros elementos urbanos que as crônicas da autora sempre evocam.


Enciclopédica como sempre, divertida como só ela sabe ser, estimulante como de hábito, lá está Clotilde nos dando notícias de várias manifestações desse mundo – de um curiosíssimo texto sobre as falas dos bichos até suas aventuras e desventuras com dois dos personagens mais presentes nas crônicas, os gatos e os “cereshumanos”, passando por uma muito peculiar figura chamada “Madrinhadal”. Nem vou dizer o quê ou quem é. Se o amigo quiser, bata lá na porta de Clotilde como eu fiz – ou mande e-mail – e adquira esse “Notícias da Existência do Mundo”. Que, de tão bom, quando acabou me abriu o apetite pra mais e mais crônicas. Lembrei a tempo que tenho uma seleta aqui de Rubem Braga na estante e me refestelei, continuo a me refestelar, enquanto o Brasil lá fora segue se bestializando.

*O título desse texto-projeto-de-crônica é uma humilde citação de “A bolsa ou a vida”, crônica de Carlos Drummond de Andrade que li num livro didático de “linguagem” quando estava ali pela sexta série do ensino básico. Bons tempos aqueles em que se começava a ler crônicas na escola pública logo cedo. Espero que continue assim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...