segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A EPIFANIA DA MISÉRIA


 
 
“Os Miseráveis”, o musical, é o esplendor do sofrimento; o transbordamento do desprezo pelo semelhante; os píncaros da sarjeta; o cume da lama; o transatlântico do desprezo. E mesmo que todo exagero áudio e visual, musical e panorâmico, perca-se ou funda-se ou seja sugado por um buraco negro pictórico onde as vastas cores da miséria viram um breu imemorial, uma lembrança restará, resistente como um homem da primeira era industrial tratado com as delicadezas do seu tempo: Anne Hathaway chorando e cantando como só a nossa Elis, até agora, era capaz.

O choro de Fantine, musicalizado com suprema emoção por uma atriz que, não dá pra acreditar, outro dia ocupava-se de um inofensivo “Diário da Princesa” – vez em quando entro no quarto da minha filha de 7 anos e lá está ela revendo o filme, lá está Anne Hathaway antes de “O Diabo veste Prada” e tudo isso. O sumo da miséria revestida pela fina película poética que nos salva enquanto humanidade está ali, na mais pungente cena de um filme que é, do início ao fim, um grito – um choro, um sentimento distendido até o limite do possível. O fato de ser um musical explicita este caráter rasga-coração de “Os Miseráveis”. E não há coração que jorre mais sangue, doce substância onde colocamos tudo o que somos e o que gostaríamos de ser, do que o de Fantine/Hathaway.

Muito se tem dito sobre o caráter meio hiperbólico do filme – sempre lembrando que a lente de aumento dramática há de ser uma marca do gênero musical e é preciso, claro, estar ciente disso antes de entrar na sala. Entrou, corte os pulsos junto com o filme, como diria o comentarista dos desfiles de carnaval na Globo. Só que, para além da pletora cênica, chama a atenção, numa linha menos óbvia, a face moral do filme: a forma é tão exacerbada que esconde um pouco seu fundo. Mas o fato é que “Os Miseráveis”, o musical, é também uma parábola moral inflexível às relativizações do nosso tempo – como o livro, que eu não li mas pretendo, é fruto de um outro contexto, facilmente esquecível pelos hedonistas tempos em que vivemos. E olhe que nós reclamamos bastante.

Ao fim da exibição, isso fica translúcido como as lágrimas de Hathaway: houve um tempo em que um homem – todos – tratava assim outro homem – os outros todos. Éramos miseráveis não apenas por não ter nada, nem um esgoto onde recostar o cadáver que de nós restaria, mas também, e principalmente, pelos sentimentos que abrigávamos na alma oculta sob as vestes físicas deste futuro presunto. Algo mudou de lá pra cá, mas talvez ainda não tenha sido o bastante – é o que nos diz, nos canta, nos chora “Os Miseráveis”.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

ZERO GRAU



Em quarenta minutos, lá se foram sete graus de miopia que meus olhos cultivaram progressivamente com ardor durante 47 anos. Em menos de uma hora, todos os pares de óculos que usei desde os 11 anos de idade se fizeram inúteis. Agora, eu acordo de manhã, abro os olhos e está tudo limpo: é o império da clareza, o reinado da definição, o domínio absoluto dos contornos. Contornos, isso é o que dá mais prazer. Nunca imaginei o quanto poderia ser bom ficar olhando a linha reta dos braços daquela cadeira, o vinco retilíneo e macio na metade do sofá, a arquitetura branquinha e suave das quinas da estante. Só um míope operado pode saber o gosto que tem ver os contornos das coisas e do mundo.
Sem falar que, correndo o risco supremo de me submeter à cirurgia, acabei – além dos graus de miopia – com uma curiosidade crônica que imagino deva acometer até a quem vê além das paredes. Como é operar os olhos? A gente vê tudo? E ver dói? Parece bobagem? Pois pra mim sempre foram questões quase metafísicas. Por isso, abro os segredos dessa magia aqui pra vocês (e magia é a palavra exata para definir o indefinível efeito dessa cirurgia que os médicos chamam de “refrativa”): ao ser operado para correção de miopia você se sente como se fosse uma mistura do Alex do filme “Laranja Mecânica” na cena em que ele vira cobaia de um tratamento antiviolência por si só ultraviolento – e dos rebeldes sem causa Jack Nicholson, Peter Fonda e Dennis Hopper na sequência mais lisérgica do filme “Sem Destino”. Pegue os dois filmes na locadora, assista sobretudo às sequências citadas e você terá uma idéia – não muito clara, claro, que neste terreno da claridade a gente só entra depois que sai da sala de cirurgia. Lá dentro, é esta confusão de luzes vermelhas (ligeiramente incômodas) e verdes (aaaah, que delícia) com os olhos abertos por uma maquininha laranjicamente mecânica. E mais não digo. Veja você mesmo.

Postagem em destaque

O último cajueiro de Alex Nascimento

Começar o ano lendo um Alex Nascimento, justamente chamado "Um beijo e tchau". Isso é bom; isso é ruim? Isso é o que é - e tcha...