sexta-feira, 16 de março de 2012

João, Manoel e Mia



Se houvesse um casamento literário entre o romancista João Guimarães Rosa e o poeta Manoel de Barros, se a lua de mel resultante se passasse na África, e se do “casal” de prosa e verso nascesse, nove meses depois, um filho, este bem poderia ter o nome de Mia. Mia Couto, o escritor de Moçambique festejado por leitores atualizadíssimos como o que de melhor existe nas letras atuais mas que este Leitor Bagunçado que vos fala, como sempre, descobre com o atraso regulamentar – e, como que para compensar, com prazer inesperado. Leio, com a mente envolva numa bruma que mistura os campos das Geraes com a umidade do Pantanal, os contos de Mia Couto reunidos em “Estórias abensonhadas”, uma seleta de causos esparsos onde o escritor dedilha neologismos e massageia palavras ao criar expressões que trazem à tona uma aquarela africana de colorido rarefeito, salpicada com os tons dos nossos dois autores que podiam muito bem tê-lo trazido ao mundo, na imagem literária de que me vali. Justo, aquele casamento de culturas e escrituras que apela na tentativa de explicar, sem recorrer ao pano de fundo necessariamente histórico de seu Moçambique, quem é Mia Couto para os que, como eu, são distraídos ao ponto de nunca terem lido o rapaz.

Nestas “Estórias abensonhadas”, a gente vai tomando contando com uma gente africana que muito lembra os caboclos mais matreirinhos das brenhas de Guimarães, e com meninos, moços e mulheres muito semelhantes àquela população brasileiríssima que habita os versos de Manoel de Barros, estes também acomodados numa bela e delicada edição de “Poemas reunidos” que o Leitor Bagunçado traçou meio bêbado de levitações no ano passado. Ler Mia Couto – ao menos o deste “Estórias abensonhadas”, que dos outros ainda não posso falar – é como reencontrar essas figuras, aquelas  paisagens e que-tais sentimentos brasileiros transplantados para a paisagem irmã dos poentes africanos, numa prosa versejada que quase o tempo todo lhe tira os pés do chão tamanha é a força gráfica das imagens empregadas pelo escritor moçambicano.

Exemplos: aqui e ali você depara com alguém “incrédulo como o sapo que comeu a cobra”. Esbarra em figuras como Felizbento, aquele que de tão calado “deu uma segunda demão no silêncio”. Noutra páginas, Mia Couto lhe apresenta aquela “infância que só na velhice se encontra”. Para leitores em crise matrimonial, eis o que diz o contista: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrava o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?” Quer mais? Um instantâneo que parece uma fotografia: “A janela: onde a casa sonha ser mundo”.

Mia Couto faz assim: joga na página, logo nos primeiros parágrafos de cada conto, um alguém africano com cheiro de brasileiro enrodilhado em determinada encrenca, desejo, dilema, arapuca narrativa (e é aqui que a trajetória do país se infiltra na matéria dessa literatura, de uma maneira que mesmo sem maior conhecimento de causa o leitor obtém, nem que seja por uma espécie de fricção gráfica, a sensação possível das vivências de Moçambique ). E dá-lhe tirar, nos parágrafos seguintes, serragens desta pessoa e desta situação, do que resulta aos pés de cada página um monte imaginário de poesia em pó, uma poeira de palavras capaz de inebriar o mais duro leitor.

Talvez por isso, as 154 páginas durem tanto nas mãos de quem as atravessa: parecem poucas, mas é como se a gente estivesse preso a um tijolo de James Joyce, um segura-porta de Dostoievski. Justamente porque, quando mais ligeiro parece nas suas manchas de textos de letras grandes e encadernação fininha a mal se pôr de pé, mais tempo esse “Estórias abensonhadas” exige do leitor: é tanta emoção e sugestão compactada em parcas mas preciosas palavras que o leitor lê e para, para e lê – sem as pausas, estaria desperdiçando o sumo das gotas oferecidas nesse veio literário. E nem dá pra botar a culpa da lentidão – que decorre do ritmo interno do texto que o bom leitor saberá respeitar e respirar – no uso de termos próprios de Moçambique, não menos poéticos e reunidos brevemente numa página final em formato de vocabulário para o português de cá.

Dito isso, resta fazer como um personagem de passagem por um dos contos de “Estórias abensonhadas”. Baixar a sugestão, em forma de decreto disfarçado: corra pra livraria e deguste você também. Ou como diz o tal personagem na página 48:

 “Não ouviu a ordem? Agora, implementa.”

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