domingo, 25 de março de 2012

Domingo com Gil e Ben





O domingo foi de Gilberto Gil, o sextagenário homem de ideias, notas musicais e nosso guitarrista-mor da MPB sem medo de ser terceira idade. O ministro de Lula deu um show aqui em casa, graças ao DVD Banda Dois, que encontrei nas prateleiras promocionais de um supermercado: biscoito fino a preço de ocasião. Um espetáculo em família, com Gil, meu filósofo musical preferido - devo ser a única pessoa do mundo que aprecia aqueles raciocínios zen-barrocos que ele elabora e meio mundo se nega a compreender - tocando com os filhos. Ben Gil é o acompanhante quase constante do show que prima pela economia tanto quanto pela elegância - e se esses dois atributos contribuem um com o outro, como se sabe, você há de imaginar do que estou falando. Gil também toca com José Gil, outro de seus rebentos literais. E ainda recebe, como numa confraria de filiações da grande família emepebê, a filha de Elis Regina numa aparição em que Maria Rita evoca, mais do que em qualquer outro momento, a figura da mãe. Ela está lá no penteado, na expressão do rosto, na cerimônia do figurino e naturalmente na maneira de cantar. Está, sobretudo, no que ela canta com Gil, recuperando uma das gravações que Elis fez do músico baiano - "Amor até o fim".

 

A direção de Andrucha Waddington confere um distanciamento cênico na iluminação que faz Gil e filhos refletirem como jóias raras que são, mas o tom de bate papo entre as canções - que, por sua vez, se bastam com banquinho e violão - adiciona pitadas de intimidade, bem daquelas do tipo que o público gosta de saborear como quem degusta minipratos de culinária caprichosa. É assim que Gil conta as circunstâncias em que escreveu e musicou "A linha e o linho", num show em cujo repertório ainda cabem preciosidades que ele raramente revisita, como "Metáfora" (onde brilha o filósofo informal que fora da música é motivo de piada cínica), a baianosa "Babá Alapalá" (do disco Revafela) e, estranhamente soando como a melhor entre as melhores, a ritmada "Banda Um", que ele não cantava desde a época dos shows do lançamento do disco homônimo e que neste DVD, naturalmente, guarda uma simetria com o título de Banda Dois com que Gil vestiu substantivamente sua apresentação com o filho Ben. E digo mais: não é apenas um cover violado da "Banda Um" que a gente conhece dos anos 80, mas uma reconstrução que insere lentidão nos breques originais daquele afoxé pop de antanho. Ficou muito boa, garanto. Tudo o que a gente cantava em golfadas de respiração marcadas ao ritmo do pezinho batendo no chão agora voltou com uma vibração alongada de cordas de violão maturado, plangendo no que é possível a aceleração da primeira "Banda Um".

 

E quando você acha que o show acabou e só lhe resta o playback de uma das faixas sobre os créditos, cai-lhe o queixo sobre a sombra dos ouvidos: pois enquanto a ficha técnica sobe, você desliza a poder da sensibilidade auditiva nas ondas calmas de uma outra recriação, desde vez de uma daquelas músicas que, de tão regravadas, pareciam ter se trancado no quarto onde está escrito a tabuleta na porta: esgotada. Qual nada: Gil canta e recanta "A paz", que fez com João Donato numa madrugada caminhando à beira mar do Leblon com o parceiro, como quem reza a um deus desconhecido. A interpretação é de uma tranquilidade profunda, de uma plasticidade rarefeita, dona daquela capacidade que têm as coisas sagradas de fazer tudo parar no ar. Gil canta "A paz" como cantaria "Se eu quiser falar com Deus". Os créditos sobem e o chão cede. No final, ele ainda tricoteia variações vocais e sonoras sem nunca deixar que a superfície calma do mar dessa canção se permita agitar o bastante para fazer oscilar a canoa desse canto. E qualquer metáfora marinha será pouco para descrever a força leve dessa recriação. "Banda Dois" ainda tem um mimo para os violonistas: o baiano ensina num longo video como tocar algumas das faixas apresentadas. O ministro não perdeu os dons, ao contrário, está melhor do que nunca. E olhe que esse show já tem um tempinho, é como uma pausa para respirar o velho ar musical que Gil teria feito após aspirar os ares da Esplanada dos Ministérios por tantos meses. Depois deles, só depois, veio o "Fé na festa" que ainda se sacode na prateleira dos lançamentos. Mas como é boa a pausa "Banda Dois" que lhe antecede, com pai e filhos recolocando na estrada e sob a luz de um palco a história do músico que faz parte da nossa história.

sexta-feira, 16 de março de 2012

João, Manoel e Mia



Se houvesse um casamento literário entre o romancista João Guimarães Rosa e o poeta Manoel de Barros, se a lua de mel resultante se passasse na África, e se do “casal” de prosa e verso nascesse, nove meses depois, um filho, este bem poderia ter o nome de Mia. Mia Couto, o escritor de Moçambique festejado por leitores atualizadíssimos como o que de melhor existe nas letras atuais mas que este Leitor Bagunçado que vos fala, como sempre, descobre com o atraso regulamentar – e, como que para compensar, com prazer inesperado. Leio, com a mente envolva numa bruma que mistura os campos das Geraes com a umidade do Pantanal, os contos de Mia Couto reunidos em “Estórias abensonhadas”, uma seleta de causos esparsos onde o escritor dedilha neologismos e massageia palavras ao criar expressões que trazem à tona uma aquarela africana de colorido rarefeito, salpicada com os tons dos nossos dois autores que podiam muito bem tê-lo trazido ao mundo, na imagem literária de que me vali. Justo, aquele casamento de culturas e escrituras que apela na tentativa de explicar, sem recorrer ao pano de fundo necessariamente histórico de seu Moçambique, quem é Mia Couto para os que, como eu, são distraídos ao ponto de nunca terem lido o rapaz.

Nestas “Estórias abensonhadas”, a gente vai tomando contando com uma gente africana que muito lembra os caboclos mais matreirinhos das brenhas de Guimarães, e com meninos, moços e mulheres muito semelhantes àquela população brasileiríssima que habita os versos de Manoel de Barros, estes também acomodados numa bela e delicada edição de “Poemas reunidos” que o Leitor Bagunçado traçou meio bêbado de levitações no ano passado. Ler Mia Couto – ao menos o deste “Estórias abensonhadas”, que dos outros ainda não posso falar – é como reencontrar essas figuras, aquelas  paisagens e que-tais sentimentos brasileiros transplantados para a paisagem irmã dos poentes africanos, numa prosa versejada que quase o tempo todo lhe tira os pés do chão tamanha é a força gráfica das imagens empregadas pelo escritor moçambicano.

Exemplos: aqui e ali você depara com alguém “incrédulo como o sapo que comeu a cobra”. Esbarra em figuras como Felizbento, aquele que de tão calado “deu uma segunda demão no silêncio”. Noutra páginas, Mia Couto lhe apresenta aquela “infância que só na velhice se encontra”. Para leitores em crise matrimonial, eis o que diz o contista: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrava o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?” Quer mais? Um instantâneo que parece uma fotografia: “A janela: onde a casa sonha ser mundo”.

Mia Couto faz assim: joga na página, logo nos primeiros parágrafos de cada conto, um alguém africano com cheiro de brasileiro enrodilhado em determinada encrenca, desejo, dilema, arapuca narrativa (e é aqui que a trajetória do país se infiltra na matéria dessa literatura, de uma maneira que mesmo sem maior conhecimento de causa o leitor obtém, nem que seja por uma espécie de fricção gráfica, a sensação possível das vivências de Moçambique ). E dá-lhe tirar, nos parágrafos seguintes, serragens desta pessoa e desta situação, do que resulta aos pés de cada página um monte imaginário de poesia em pó, uma poeira de palavras capaz de inebriar o mais duro leitor.

Talvez por isso, as 154 páginas durem tanto nas mãos de quem as atravessa: parecem poucas, mas é como se a gente estivesse preso a um tijolo de James Joyce, um segura-porta de Dostoievski. Justamente porque, quando mais ligeiro parece nas suas manchas de textos de letras grandes e encadernação fininha a mal se pôr de pé, mais tempo esse “Estórias abensonhadas” exige do leitor: é tanta emoção e sugestão compactada em parcas mas preciosas palavras que o leitor lê e para, para e lê – sem as pausas, estaria desperdiçando o sumo das gotas oferecidas nesse veio literário. E nem dá pra botar a culpa da lentidão – que decorre do ritmo interno do texto que o bom leitor saberá respeitar e respirar – no uso de termos próprios de Moçambique, não menos poéticos e reunidos brevemente numa página final em formato de vocabulário para o português de cá.

Dito isso, resta fazer como um personagem de passagem por um dos contos de “Estórias abensonhadas”. Baixar a sugestão, em forma de decreto disfarçado: corra pra livraria e deguste você também. Ou como diz o tal personagem na página 48:

 “Não ouviu a ordem? Agora, implementa.”

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