sábado, 22 de janeiro de 2011

A lente de Canetti


Todo aspirante a escritor deveria ler Elias Canetti. Se não para singrar pela sua prosa memorialística que traz de volta ao presente a atmosfera intelectual e metropolitana da Áustria e da Alemanha à beira do nazismo - que pode soar deslocada e distante no tempo para o leitor atual - ao menos, ou certamente, para privar da maneira como o escritor vienense (vamos combinar que ele fosse vienense, seu espírito era esse, embora tenha nascido em local diverso e vivivo em vários outros) captura a figura humana e a reproduz no seus textos.

A editora Cia das Letras acaba de colocar nas livrarias uma reedição de bolso - e bem baratinha - da trilogia memorialística de Elias Canetti, e só um tolo ou esnobe não fica pelo menos tentado a comprar os novos livrinhos - por sinal, graciosos em sua nova feição gráfica - e, ato contínuo, reler "A Língua Absolvida", "Uma luz em meus ouvidos" e "O Jogo dos Olhos". Depositei minhas defesas diante deste último, que muita gente, como meu amigo Carlos de Souza, considera o melhor da série. Ou será que me confundo, que o melhor é o primeiro, opinião de Rejane aqui em casa?

Não importa: as memórias de Canetti valem mais pelo que contêm em si, independente do volume, à parte a linearidade dos relatos. É impressionate o talento que o homem tem com as palavras para analisar um rosto, dissecar uma expressão, apontar no gesto de uma exata pessoa o reflexo do que se passa em um país inteiro - melhor, em toda uma parte do mundo naquele tal momento. Em "O Jogo dos Olhos", ele conta sobre as refregas intelectuais entre escritores do seu tempo e lugar, expõe vaidades mas não tem pudor de declarar suas admirações - e suas decepções também, como a relação de pasmo e repulsa que alimenta em relação a Karl Krauss. Pelo livro passam James Joyce e Robert Musil - e passeiam os bastidores da conclusão de seu livro mais famoso, o "Auto de Fé" que foi meu "Ulisses" (não tendo lido jamais o segundo, venho me contentando com a dificuldade do primeiro, que de fato senti ao atravessar suas não sei quantas páginas de angústia livresca européia, um sentimento com o qual tenho imensa dificuldade de me identificar).

Está claro que as memórias me agradam muito mais do que o romance-catatau de Canetti - de que com elas, mesmo sentindo o peso de uma distância temporal, cultural e espacial, estabeleço uma forma de sintonia. A trilogia de Canetti são o "Em buca do tempo perdido" deste não-leitor de Proust. Nâo se pode ter tudo - as vias do leitor se fazem por tais desvios. E emerge das memórias de Canetti o mesmo humanismo que marca a obra inteira do autor, segundo quem a conhece de verdade. "O Jogo dos Olhos", mesmo expondo panoramas tão vagos para os nossos dias, nos aproxima do olhar de um escritor que soube como poucos escanear (pra usar uma palavra moderna) a natureza do que via à sua frente. Um olhar terno que buscava a humanidade mais recôndita nos seres com os quais convivia entre ateliês, praças e bouvelares. A releitura deste livro foi um exercício de contemplação e uma reafirmação de certa maneira de estar no mundo, conforme ensina Elias Canetti. Lenta como não convèm à superfície dos dias atuais, mas profunda e sem ansiedade como de fato é recomendável para qualquer que seja a época. O jogo dos olhos de que fala o título é esta metáfora sobre a melhor maneira de se enxergar o que está em volta - e se foi concebida durante os anos 30, bem no nascimento do nazi-facismo, tanto melhor, pois que passou na prova do que de pior este mesmo mundo conheceu e produziu.

Elias Canetti, seu autor e criador, é essa lente para todos os tempos. E está de volta às livrarias, por uma ninharia - o que, embora seja uma rima, não se engane: é também uma solução.

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