conexões entre amigos, livros, filmes, discos, memórias, férias, viagens, natal e brasília
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
Conexão religada
É o programa mais antigo da tv a cabo brazuca. Já foi mais divertido em outras fases. Sim, porque de tão longevo, já comporta fases. Houve o período áureo, o inicial, com a rabugice autêntica de Paulo Francis. Depois, as coisas foram se acomodando, a composição mudando e mesmo com o autodeslumbramento intelectual-amostrado de Arnaldo Jabor, dava pra levar. Jabor cansou dele mesmo, Nelson Motta decidiu se re-reinventar outra vez em terras brasileiras, foi-se o charme de Lúcia Guimarães para outros canais, veio esse Mainardi espelho-meu-existe-alguém-mais-blasé-do-que-eu e agora tem até um rapaz que, performático demais nas intervenções em video tape, até que soa bem situado na bancada.
Pois é, o velho Manhatan Conexion, que estreou no distante ano de 1993 na grade do então também novinho GNT, está de volta - e, melhor, continua o mesmo. Está de volta porque mudou de canal, embora você precise apenas de um clique pra sintonizar o novo endereço. Pulou pra GloboNews - que, quanto mais retocada visualmente, mais pobre parece intelectualmente. É o canal campeão da obviedade, sobretudo na política. Nunca houve comentaristas políticos de ideias tão óbvias quanto os da GNews. Valhei-nos Lucas Mendes! Mas a conversa é sobre o Manhatan e não sobre o canal de notícias de Ali Kamel. A estreia no novo canal foi domingo e, só por acaso, estava no comando do controle remoto do fim de noite dominical.
Vi tudo, com o gostinho de antigamente, embora a fleuma de Mainardi não dê nem pra saída quanto tenta se comparar à genuína má vontade de Paulo Francis. Lembro de ver Paulo Francis comentar alguma coisa com o desdém elaborado de um assobio, um suspiro, uma reticência verbal - e ali estava dito tudo. Duvido que esse outro consiga se conter tanto. E tem o velho Caio Blinder com sua cara de bom moço cdf paulistinha, sempre pronto a despolemizar o que quer que seja. O outro integrante, o economista cujo nome me escapa, tem aquela cara de menino de recado do mercado financeiro mas convém não ser totalmente ignorado: às vezes, na refrega de uma controvérsia descontrolada, é o dono da opinião mais acertada - justo porque menos polêmica e mais pé no chão. É a vingança do pragmatismo, o moço.
Enfim, depois de um longo intervalo, pode ser que eu volte a assistir religiosamente ao Manhatan Conexion nas noites dominicais, como um bom programa de higiene mental para encerrar - ou por outra, começar - a semana. O segredo do programa, já se disse, é o mix humor-análise; e o fato é que durante um bom tempo a atração pecou por certo mal humor cultivado, uma abordagem que buscava mais a exposição da soberba de cada participante do que a leveza da avaliação boa exatamente por ser ligeira - e sem maiores pretensões. Na reestreia de ontem na GNews, o ar estava menos carregado. Imagine: quase não se bateu em Lula. Aliás, quase não se falou de Lula. De Dilma, sim - mas sem o rancor esnobe que as cartilhas exigiam até meses atrás. De maneira que vou ver, devo ver, pretendo ver. Até enquanto o novo Manhatan Conexion me lembrar os antigos, que assistia em fitas VHS gravadas nas intalações da não menos antiga TV Cabugi.
sábado, 22 de janeiro de 2011
A lente de Canetti
Todo aspirante a escritor deveria ler Elias Canetti. Se não para singrar pela sua prosa memorialística que traz de volta ao presente a atmosfera intelectual e metropolitana da Áustria e da Alemanha à beira do nazismo - que pode soar deslocada e distante no tempo para o leitor atual - ao menos, ou certamente, para privar da maneira como o escritor vienense (vamos combinar que ele fosse vienense, seu espírito era esse, embora tenha nascido em local diverso e vivivo em vários outros) captura a figura humana e a reproduz no seus textos.
A editora Cia das Letras acaba de colocar nas livrarias uma reedição de bolso - e bem baratinha - da trilogia memorialística de Elias Canetti, e só um tolo ou esnobe não fica pelo menos tentado a comprar os novos livrinhos - por sinal, graciosos em sua nova feição gráfica - e, ato contínuo, reler "A Língua Absolvida", "Uma luz em meus ouvidos" e "O Jogo dos Olhos". Depositei minhas defesas diante deste último, que muita gente, como meu amigo Carlos de Souza, considera o melhor da série. Ou será que me confundo, que o melhor é o primeiro, opinião de Rejane aqui em casa?
Não importa: as memórias de Canetti valem mais pelo que contêm em si, independente do volume, à parte a linearidade dos relatos. É impressionate o talento que o homem tem com as palavras para analisar um rosto, dissecar uma expressão, apontar no gesto de uma exata pessoa o reflexo do que se passa em um país inteiro - melhor, em toda uma parte do mundo naquele tal momento. Em "O Jogo dos Olhos", ele conta sobre as refregas intelectuais entre escritores do seu tempo e lugar, expõe vaidades mas não tem pudor de declarar suas admirações - e suas decepções também, como a relação de pasmo e repulsa que alimenta em relação a Karl Krauss. Pelo livro passam James Joyce e Robert Musil - e passeiam os bastidores da conclusão de seu livro mais famoso, o "Auto de Fé" que foi meu "Ulisses" (não tendo lido jamais o segundo, venho me contentando com a dificuldade do primeiro, que de fato senti ao atravessar suas não sei quantas páginas de angústia livresca européia, um sentimento com o qual tenho imensa dificuldade de me identificar).
Está claro que as memórias me agradam muito mais do que o romance-catatau de Canetti - de que com elas, mesmo sentindo o peso de uma distância temporal, cultural e espacial, estabeleço uma forma de sintonia. A trilogia de Canetti são o "Em buca do tempo perdido" deste não-leitor de Proust. Nâo se pode ter tudo - as vias do leitor se fazem por tais desvios. E emerge das memórias de Canetti o mesmo humanismo que marca a obra inteira do autor, segundo quem a conhece de verdade. "O Jogo dos Olhos", mesmo expondo panoramas tão vagos para os nossos dias, nos aproxima do olhar de um escritor que soube como poucos escanear (pra usar uma palavra moderna) a natureza do que via à sua frente. Um olhar terno que buscava a humanidade mais recôndita nos seres com os quais convivia entre ateliês, praças e bouvelares. A releitura deste livro foi um exercício de contemplação e uma reafirmação de certa maneira de estar no mundo, conforme ensina Elias Canetti. Lenta como não convèm à superfície dos dias atuais, mas profunda e sem ansiedade como de fato é recomendável para qualquer que seja a época. O jogo dos olhos de que fala o título é esta metáfora sobre a melhor maneira de se enxergar o que está em volta - e se foi concebida durante os anos 30, bem no nascimento do nazi-facismo, tanto melhor, pois que passou na prova do que de pior este mesmo mundo conheceu e produziu.
Elias Canetti, seu autor e criador, é essa lente para todos os tempos. E está de volta às livrarias, por uma ninharia - o que, embora seja uma rima, não se engane: é também uma solução.
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