sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Adeus no frio


A ressaca de frio que se abateu sobre Brasília nos últimos dias parece um ritual de despedida da casa de onde nos mudaremos em pouco mais de uma semana. Se falar do tempo é uma tentação constante - e talvez seja por isso que a meteorologia é o ítem número um no puxar de conversas em paradas de ôniibus, consultórios médicos e afins - esta semana temos assunto de sobra. Uma onda de frio ligeiramente fora do tempo certo - que é junho/julho - trepida sobre as vastidões urbanas do Distrito Federal, indiferente ao recesso branco do Congresso, à propaganda eleitoral na tevê e ao clima de já-ganhou que vai cercando a candidata Dilma. Indiferente, sobretudo, à sensibilidade pra lá de ressecada das peles de quem habita este quadrado no coração do Brasil. E talvez não tão indiferente à nossa situação particular por estes dias, de aos poucos se despedir da casa onde moramos por quase dois anos, à base de uma proposta nova de vida que infelizmente não pode se realizar como gostaríamos. Não há de ser nada, o show deve continuar - mas que há uma espécie de ironia meteorológica neste frio inesperado que baixou os termômetros a 11 graus na madrugada de quarta para quinta-feira, ah, sim, isso há.

Na manhã gélica onde ao menos o sol, forte como convém, dá pinceladas de calor, observo os cantos e recantos da casa que mais me agradaram neste período passado aqui. E o mais apelativo deles não é a sombra daquela árvore que sempre tivemos dificuldade em precisar de que seja - a versão mais aceita é de um pé de nêspera, mas sei não - tampouco a sombra breve das árvores de um dos lados da fachada. O lugar preferido segue sendo um dos becos laterais, enfeitado pelo tom vermelho vivo de uma planta de pouca folhagem e muitas e derramadas flores. Uma poética hemorragia benigna em forma de planta. E à sombra dela, num similar de oitão sertanejo, a calçadinha de cimento dividindo espaço com a terra nua. Ali eu li praticamente todo o "Viver para contar" - as memórias de Gabriel Gaarcía Marquez que um dia trouxemos de Buenos Aires. E era ali que eu planejava ler tantas outras coisas, se tempo houvesse e oportunidade existisse. O fato é que em grande parte as demandas da própria casa - com seus caprichos de manutenção vigilante - acabaram tomando o tempo daqueles becos e leituras.

Dizem que sábado o calor volta. Se assim for, retornará a tempo de a gente se despedir melhor da casa que, claro, funciona e destaca-se muito mais em tempos de temperatura elevada. Uma das conclusões ao final do período é de que, tanto quanto está mais predisposta a respirar melhor em tempos de calor - ademais, calor que é uma constante em Brasilia, com exceção apenas daquele junho-julho - a casa e seus espaços amplos também pedem uma família grande. Muita gente, no dizer direto de todo mundo. Casa com pouca gente - um casal com um casal de filhos - é sensação incômoda de corredor vazio. Como morar numa catedral, habitar um armazém amplo mas exagerado. Estamos de mudança para o apartamento que compramos no Sudoeste, 120 metros quadrados do mais puro aconchego, pra ficar no tucanês renitente que teima em resistir aos avanços da camarada Dilma. Lado da sombra, praça arborizada em frente, comércio vasto nos fundos. É como trocar "o sítio pela rua" - e quem é do interior entende o significado da expressão. Além do mais, no circuito Sudoeste-Cruzeiro-SIG faz muito mais calor do que aqui, nesta pontinha de Asa Norte-Lago Norte pelo qual sempre cultivamemos, meteorologia à parte, um carinho de ex-morador por tantos anos. Mas o calor é sempre a nossa meta, alcancável ou não. O calor que nos espera na nova moradia, o doce aquecimento global que embrulha as ruas e dunas de Natal e, em último caso, como um filme que roda pra trás pra não deixar que a gente esqueça as referências fundamentais, a quentura do Seridó.

De qualquer maneira, esse frio ocasional e fora de época que nos serve de ritual de despedida da casa há de passar antes que o caminhão de mudança estacione aqui em frente.

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