quarta-feira, 5 de maio de 2010

Segismundo e a Grécia


Chegou carta de Segismundo Siqueira, fumaçando de quente com as últimas notícias do Urtigão acariense da serra do Bico do Papagaio. Vamos à lettera:

Cabra Tião, salve sempre!

Esta noite, vislumbrando o noticiário do mundo na bola de cristal marca sansung que meus netos me deram no Dia do Índio, apascentei a alma quanto a uma das culpas que carrego. Explico, tão detalhosamente quanto possa eu ou quanto suporte sua pessoa. Foi em 1983, quando afinei a casca do meu couro nas baionetas da polícia. Ano de seca brava, esturricação genérica, bicho morrendo, esqueleto de gado nas beiradas do caminho. Coisa triste, tempos outros. Foi-se, como quisera. Mas para domesticar a fome a ponto de a criatura se manter em pé foi preciso medida radical de desesperado: o saque, que as bolas de cristal daqueles tempos, chuviscadas como não se vê mais à sombra das arupembas modernas, também noticiaram.

No saque, fui um deles, prezado. Estava lá, correndo dos homens com o peso de uma saca de feijão bem afanado nas costas. Não sei se só por impaciência do estômago ou também por revoltas do espírito. Mas estava lá e fui xingado, em impropérios municipais xinfrins e também em letras elegantes de jornais e revistas das capitais. Flagelado era o mínimo que se dizia de nós, com aquela mistura de desprezo e preconceito fermentado. Agora, pois, e volto ao presente da atualidade, vejo na bola vitrificada da sansung que coisa parecida - ou idêntica, que as variações das manifestações humanas de desespero se igualam na intensidade das revoltas - está a se passar em terras do país da Grécia, naquele mundão consagrado que nasceu antes da gente e se chama Europa. E, ao que vejo na sansung colorida como o quê, o mundo todo está até que bem compreensivo, achando motivos para amparar o furor da greguaiada de molotov debaixo do braço. Apois, sim - veja mesmo. Como dizia minha ancestral Mariquinha Tapioca, que Deus a tenha, "sostô você". Se fosse nós, aqui das bandas do Bico, os trabucos já estavam cantando suas ave-marias.

Atraído por um anúncio na mesma sansung cheia da novidade, assaltou-me uma vontade danada de descer a serra e assistir ao cinema. Sim, senhor, o velho cinema onde não piso desde a estréia de Vicente Celestino no tornei-me um ébrio de chorosa lembrança. Que filme melhor que aquele duvido que de então se tenha sido feito. Pois a sansung diz que tem, e que se chama "Homem de Ferro 2" e que todo mundo, até eu aqui no meu muquiço, tenho que me manifestar para assistir - e que caso contrário posso me anular do mundo como pessoa inexistente, como se já não fosse essa minha profissão de vida diária. Mesmo assim, mexeu com os brios. Quis ir ver, em 3D como obriga a propaganda. E só não fui porque nem Caicó nem Currais, muito menos Acari, que é pertinho e não precisa de gastar gasolina para chegar, não tem, descobri estes dias, cinema 3D para me apresentar à fita. Fiquei fulo, pois queria saber o que danado tem esse Homem de Ferro em matéria de mau humor, cinismo e cansaço do mundo que eu, socado aqui nos altos dessa serra de ninguém, não tenha.

E o mundo aí, pagando os fundos dos fundos para assistir ao que a vida verdadeira exibe de graça. É muita moda, prezado. Ou por outra: eu, que sempre me achei um xique-xique em forma de gente sem ligação alguma com o mundo, estou muito do por-fora. Porque o Homem de Ferro 2, com sua convocação obrigatória para as massas se derrearem diante do rancor cultivado, diz sobretudo que eu, e ninguém mais que eu, estou muito é na moda. Só falta agora escrever um livro e desfilar em autógrafos nas livrarias.

Pra encerrar, contar de visita que recebi estes dias. Ciro Gomes, meu sobrinho de estimação, veio aqui. Pedir a bênção, injuriado. Acalmei o menino com um copo de água de riacho. É por isso que ele se sumiu - não é nada de ter ido pro estrangeiro não, conversa pra boi dormir.

Até a próxima.

Do amigo sempre pronto para uma patada,

Segismundo.

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