Memória, delírio e realidade.
Quem leu a já também clássica biografia de Ruy Castro para Nelson, "O Anjo Pornográfico", sabe do impacto da montagem original.
Sabe da dificuldade de montar o texto lá nos idos de 1943. Ziembski fez a montagem inicial.
Tem a parte do escândalo verdadeiro ou pra consumo externo, num outro Brasil - se bem que, a gente sabe, o Brasil nem sempre evolui o quanto a gente imagina (a propósito, reveja outro clássico, "Cabra Marcado pra Morrer", de Eduardo Coutinho, e note o quanto o bolsoburrismo trouxe de volta coisas que se julgava tão superadas, fim do parênteses).
Pois um grupo de Belo Horizonte está tendo a ousadia de remontar "Vestido de Noiva". Em cartaz no CCBB de Brasília.
Coragem de mamar em onça, com se diz.
Fomos ver e soou mais corajoso ainda, mesmo que fazendo uma opção cênica meio... conservadora.
Calma que explico: a montagem opta por uma narração em off, apoiada em um subtexto em video (talvez por isso o grupo se chame Oficcina Multimédia, assim mesmo com acento no "mé"), que explica, traduz, facilita o tempo todo o entendimento do texto.
Eu achava, sempre achei (e eu não sou um tampa mas aqui tá implícito que eu li o texto original, li sim), que a graça suprema de "Vestido de Noiva" era o espectador se perder no emaranhado de memória, delírio e realidade. Que explicar isso logo na primeira cena do espetáculo era um supremo sacrilégio, capaz de comprometer a montagem inteira.
Pois eles fizeram justo isso.
Eu tô em dúvida até agora sobre o efeito, mas a proposta é essa - corajosa ou não? Gosto que haja uma proposta, a gente precisa estar aberto pra ver no que vai dar, abraçar e medir, abalizar. Ruim é ficar parado, só admirando o mito.
Funciona na medida em que aquele telão com a narração, as explicações, os quase comentários, funcionam como uma ilustração a mais da divisão dos planos. Além da memória, realidade e delírio, tem os planos dos vários espaços - reais ou eletrônicos - em que a encenação se dá. Planos formais.
O resultado é uma montagem de extrema agilidade.
Verdade que também me chateia um pouco um certo cacoete do teatro atual (pelo menos do pouco que eu vejo), essa mania de ficar arrastando objetos de cena como mesas ou cadeiras o tempo inteiro. Há pouco tempo vi também no CCBB-Brasília um ótimo musical sobre Carmem Miranda que tinha essa mesma mania, os atores ficaram o tempo inteiro empurrando letras gigantes no palco.
Mas, no geral, esse "Vestido" não pára quieto. E isso, claro, deixa menos arrastado o texto original, dá um colorido - um colorido não, um certo tom de sépia pop, digamos assim - ao mundo sombrio do velho Nelson. Não sei se ele gostaria disso, mas.
Em momentos mais exagerados, chega a parecer um desenho animado. Alaíde-Papa Léguas, sim, mas é uma proposta - e isso importa, sim.
Também tem uma ótima sacada: a duplicação das intérpretes de Alaíde, a moça que vai casar e é atropelada, dando início à maratona delírio-memória-realidade que serve de eixo ao texto e às suas encenações.
Duplicada a interpretação (e não só de Alaíde), já se abrem novos planos internos no texto que estimula este tipo de ousadia, se é que ousadia ainda é uma palavra válida hoje em dia.
Vão ver, se puderem. Nâo se sabe quando haverá outra chance.